O destino dos Irmãos Dagobé em uma canção de Raul Seixas

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Cena da peça Três Irmãos, inspirada no conto de Guimarães Rosa

Na semana em que tristemente lembramos a data de ‘encantamento’ do nosso Grande Guimarães Rosa, que tal deixar a imaginação rolar solta e brincar com música e literatura?[i]

Antes de entrar na brincadeira, preciso me explicar. Como leitora, acredito que o que determina a grandiosidade de uma obra é, sobretudo, o seu desfecho. O maior exemplo disso é o grand finale de Dom Casmurro, que poderia simplesmente ter acabado logo após o casamento de Bentinho e Capitu – caso Machado de Assis tivesse pretensões de ser um mero escritor de best seller. Mas não, a história não parou no “viveram felizes para sempre” e, por causa disso, hoje sabemos que poucos livros brasileiros superam a maestria deste romance machadiano.

Com isso, é possível dize que todo bom escritor, ciente do que quer para si e para seus personagens, sabe que é necessário caprichar no enredo, mas se superar no fim. Nós, leitores, porém, podemos ir adiante e imaginar o que poderia acontecer depois do último ponto final, não podemos? Foi o que eu fiz ao terminar de ler o conto Irmãos Dagobé, de Guimarães Rosa.

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Raul Seixas

Infelizmente, terei que contar como são as últimas linhas que determinam o destino destes irmãos. Se não leu o texto ainda e não gosta de spoiler, pare por aqui (como se eu não tivesse feito isso quando falei sobre Dom Casmurro). Caso queira viajar comigo, aceite o convite!

Depois do brutal assassinato de Damastor Dagobé, irmão mais velho de Derval, Dismundo e Doricão, uma pequena cidade acompanha o velório e enterro, com lástima ao que resta da família Dagobé, sem deixar, porém, de indagar sobre o destino dos quatro. Ou melhor, sem deixar de especular sobre como seria a vingança e se o fato ganharia cabo ali mesmo, durante o enterro.

Sem entrar em pormenores, fato é que os três irmãos vão contra a lei do cangaço e em vez de honrarem o nome e a imagem de Damastor, decidem abandonar tudo e recomeçar a vida em outro lugar: “A gente, vamos’embora, morar em cidade grande… O enterro estava acabado. E outra chuva começava.”.

Simbolicamente, a chuva aparece carregada de sentidos, representando principalmente o início de um novo ciclo, de uma nova vida para o que restou da família Dagobé. Um final feliz, à primeira vista e leitura.

No entanto, o desfecho seria igualmente agradável, caso Guimarães Rosa resolvesse prolongar sua narrativa? Infelizmente (ou felizmente), nunca saberemos. A não ser que busquemos outras referências para falar sobre o assunto e é aí que entra Raul Seixas.

O cantor e compositor baiano foi um dos grandes nomes da música brasileira. Suas músicas libertárias falam sobre tudo e mais um pouco, inclusive sobre a inocência e a esperança, características próprias em pessoas que chegam do interior pra tentar a vida na cidade. Neste caso, há uma música em especial, Sessão das dez.

A primeira estrofe diz o seguinte:

Ao chegar do interior
Inocente, puro e besta
Fui morar em Ipanema,
Ver teatro e ver cinema era a minha distração.

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Guimarães Rosa

O que vem em seguida é a história de um homem que ingenuamente se apaixona e se casa. Dez anos se passam e a separação é inevitável e eis que novamente nosso ‘eu lírico’ se vê sozinho, desolado e abandonado na imensidão urbana. Na canção, o foco é o casamento, mas este simples elemento pode ser entendido como símbolo para todas as ‘amarras’ que dão vida aos grandes centros urbanos.

A lei de sobrevivência na cidade exige força, coragem e, antes de tudo, esperteza, pelo menos de acordo com o que comumente se prega por aí. Trabalhar, economizar, ter onde morar e como se locomover, se vestir bem, respeitar regras de etiqueta e se achar entre prédios e ruas são apenas algumas das barreiras que um cidadão bem vivido encontra ao longo do seu dia.

A lei do cangaço é terrível, os irmãos Dagobé fugiram disso. O que eles não sabem ou não sabiam é que as coisas não são muito diferentes na cidade grande, onde a solidão e outros ‘medos diários’ toma conta da multidão. Estariam os três últimos membros da família Dagobé preparados para isso? Quantos Dagobés vieram para a cidade e não se decepcionaram com o que viram?

Para não me prolongar demais, fica aqui apenas um exemplo do mundo que a arte, neste caso a música e a literatura, nos colocam diante dos olhos. Por isso, conversar sobre estas duas expressões artísticas é falar sobre a vida, sobre o mundo. As leituras, possibilidades e interpretações são infinitas. E é por esta razão que os livros acabam, para nos deixar aqui, pensando sobre isso tudo.

Imagem de capa: Virundangas



[i] A brincadeira aconteceu a sério, durante uma disciplina de especialização em Literatura Latino Americana, isso em 2011. Como trabalho, precisamos entregar algum material inspirado nas aulas que fizeram um intertexto entre Rulfo e Rosa. Como envolvia intertextualidade, quer coisa mais “intertextualizada” à literatura que a música? Pois foi assim que surgiu a ideia de brincar com Rosa e Raul Seixas.

 

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