Se o Todo-Poderoso não tivesse convocado Dorival Caymmi, com a sua voz inconfundível e inabalável e o seu violão magistral para cantar a Bahia poética, romântica, ingênua, negra e praieira lá no firmamento, ele teria completado 100 anos em 30 de abril. O cantor e compositor está presente num dos romances mais porretas da literatura mundial: Dona Flor e Seus Dois Maridos, do parceiro e amigo Jorge Amado. No livro, o escritor revela que Caymmi e Vadinho eram amigos do peito, e que juntos tomaram os primeiros tragos e vararam as primeiras madrugadas.
E também houve o lance do siri-boceta. Dona Flor descobrira a verdadeira condição de Vadinho: pobre, sem vintém, funcionário chinfrim, picareta e facadista, cachaceiro, libertino e jogador. Temendo perdê-la, o malandro, já enrabichado pelos dotes da morena, reuniu o melhor da boêmia baiana e orquestrou a inesquecível serenata da ladeira do Alvo. E lá estava Caymmi: Quanto ao violão, dedilhava-o um moço querido de toda a gente por sua educação e alegria, seu jeito modesto e ao mesmo tempo fidalgo, sua competência no beber, sua finura de trato, e sua música: a qualidade única de seu violão, dele e de mais ninguém, e sua voz de mistério e picardia. Um retado.
Entretanto, virada no cão, a mãe de dona Flor, o estrupício raivoso de Dona Rozilda, carne-de-pescoço, que se comparava à quarta-feira de cinzas, o término da alegria de qualquer um, não ia deixar barato e estava disposta a colocar todos para abrir o gás. Mas aí veio a última cartada: Então todos viram Vadinho adiantar-se em direção a sua futura sogra e diante dela ao som da flauta, executar com perfeição e donaire, num catado de pé e num gingo de corpo, o passo do siri-boceta, o difícil e famoso passo do siri-boceta.
A dancinha foi inventada por Caymmi. Relatos afirmam que há 30 anos ele apresentou pela última vez em público o passo do siri-boceta, com agilidade e maestria, apesar de já ser septuagenário – que nenhum dançarino de Axé music ouse imitá-lo.
Jorge Amado e Caymmi se consideravam irmãos gêmeos. Juntos compuseram alguns clássicos, como É Doce Morrer no Mar, Modinha para Teresa Batista e Canto de Obá. A amizade e afinidade era da grandeza do talento dos dois, multiplicado uma porção de vezes. Inclusive, “se dizia que se Jorge fosse compositor, ele escreveria as músicas de Caymmi. E, se Caymmi fosse escritor, faria as obras de Jorge”. Esses moços inventaram a Bahia. Que dupla retada, hein?!