O discurso manipulador do narrador em 1ª pessoa

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O narrador em 1ª pessoa pode te manipular. Na maioria dos casos, ele é o próprio protagonista e narra tudo a partir do seu ponto de vista, isto é, trata-se de um discurso subjetivo.

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Ilustração: Monica Barengo

As narrações em primeira pessoa apresentam o ponto de vista exclusivo do narrador, que, em muitos casos, é o próprio protagonista. Por isso, são tão interessantes e perigosas. Se o leitor tem apenas a versão dos fatos de um dos personagens, ele acaba por conhecê-lo profundamente, passando a enxergar a história com aquele olhar já viciado. Portanto, narradores em primeira pessoa não costumam ser confiáveis.

Vejamos alguns exemplos de narradores-personagens extremamente manipuladores. O caso clássico é o de Bentinho, o Dom Casmurro de Machado de Assis. O marido ciumento apresenta a todo momento evidências sutis de que Capitu, desde criança, possuía uma personalidade duvidosa, sedutora e dissimulada. Ele vê no próprio filho traços do amigo Escobar, com quem Capitu o teria traído. Se há um fundo de verdade nas suposições de Bentinho ou se foi apenas cisma de um homem amargurado e inseguro, jamais saberemos. O que não se pode negar é que, durante todo o romance, o narrador tenta convencer seu leitor da traição de Capitu, como um bem preparado advogado de acusação.

Já como advogado de defesa de sua própria causa, Humbert Humbert, criado por Vladimir Nabokov em Lolita, tenta justificar seus atos (de pedofilia e assassinato), fazendo o leitor de júri. O pedófilo conta como é inocente dentro de sua perversão, tendo se limitado a apenas admirar as belas ninfetas (palavra que usa para descrever as meninas sedutoras), sem lhes causar nenhum mal, até conhecer a espevitada Lolita, por quem se apaixona perdidamente. Ele afirma nutrir um amor sincero, quase paternal, pela garota, com quem viveu um turbulento romance, que o levou a matar o homem com quem ela o traiu. Humbert é um depravado desprezível, mas sabe seduzir o leitor com suas palavras bem argumentadas.

Porém, em determinados momentos, por mais manipulador que seja, o narrador acaba se entregando. Seus pontos fracos também vêm à tona. Nota-se que Bentinho sempre foi conduzido por figuras femininas, como a mãe e posteriormente Capitu, já que o próprio é fraco para tomar atitudes sozinho. Além disso, em certa ocasião, ele flerta com Sancha, esposa de Escobar, o que põe em questão quem seria o verdadeiro adúltero da história. No caso de Humbert Humbert, por vezes ele se cansa de se passar por bom moço e assume sua falta de caráter, jogando na roda suas falhas, além de algumas hipocrisias sociais.

Narradores em primeira pessoa, quando bem construídos, sabem conduzir o leitor a um labirinto de dúvidas (ou certezas camufladas). Basta ficar atento às pistas deixadas no enredo e completar o quebra-cabeça dessas instigantes personalidades literárias.

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