O enquadramento seletivo no documentário Janela da alma e o romance Fazes-me Falta, de Inês Pedrosa
No documentário Janela da alma, dirigido por João Jardim e Walter Carvalho, artistas e personagens que têm algum tipo de dificuldade para enxergar – como o músico Hermeto Paschoal, a atriz Marieta Severo, o escritor José Saramago, o vereador Arnaldo Godoy, o fotógrafo Evgen Bavcar, o neurologista Oliver Sacks – são entrevistados, relatando suas experiências visuais, que vão da miopia à cegueira.
O cineasta alemão Wim Wenders diz que já tentou utilizar lentes de contato. Não conseguiu manter o hábito – sentiu falta do enquadramento seletivo proporcionado pelos óculos. Sem eles, enxerga demais. Afirma que, nos dias de hoje (o filme é de 2001), somos bombardeados por uma enxurrada de imagens. Nunca esteve tão fácil ter acesso a fotos, filmes, pinturas ou histórias em quadrinhos. Porém, não enxergamos nada. O que nos falta não são meios, mas tempo. Séries de televisão têm suas temporadas de doze episódios devoradas em um dia. Não há o que esperar.
A literatura também é imagética. Ricardo Piglia coloca uma “câmera” na mão de seu narrador, Emilio Renzi, personagem que observa tudo de longe, aproximando apenas o zoom de sua lente. Ajusta os anéis de foco e distância, corta as imagens do presente com cenas do passado.
A leitura de Um copo de cólera, de Raduan Nassar, me levou ao romance Fazes-me falta, da portuguesa Inês Pedrosa, livro recomendado por uma amiga que morou em Portugal. A autora, assim como Piglia, também promove experiências visuais de leitura.
A história: dois amantes são separados pela repentina morte da mulher. Alternadamente, cada capítulo é um monólogo. Eles refletem sobre as nuances e detalhes da relação, revelando as visões que têm um do outro, suas personalidades, concepções de mundo. Tudo sendo mostrado aos poucos, pausadamente. Imagética, a narrativa é feita de devaneios e fragmentos que remetem aos filmes de Terrence Malick.
A cada “episódio”, contrastes são expostos. Ele, cinquentão. Ela, perto dos trinta. Ele é adepto à erudição, apreciador de música clássica, enquanto ela é fã de cultura pop, do cinema de Woody Allen, da fúria esbelta e desenfreada dos Rolling Stones.
Ela, narradora metafísica, um Brás Cubas melancólico, localizada em algum lugar do pós-morte, ganha uma “câmera” com lente anamórfica, imagens reproduzidas num filme de 70 mm, tendo uma visão mais ampla de tudo.
Ele, ainda vivo e num nível inferior, menos panorâmico, ajusta seu olhar a um enquadramento limitado, procurando um sentido para sua existência. Como se tentasse enxergar pelo óculos de Wim Wenders.