O escândalo de ‘As flores do mal’

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O escândalo de ‘As flores do mal’
Charles Baudelaire

Há 160 anos, a primeira edição de As Flores do Mal, do escritor Charles Baudelaire, provocava escândalo

Charles Baudelaire

Tradução da matéria publicada em Le Figaro

OS ARQUIVOS DO FIGARO – Em 25 de junho de 1857, Charles Baudelaire publica uma coletânea de poemas, As Flores do Mal. Fonte de escândalo desde o seu lançamento, o livro suscita a revolta da imprensa, e em especial um virulento artigo publicado em nossas colunas.

“O odioso acompanha o ignóbil; o repulsivo se alia ao infecto”, critica Gustave Bourdin no Figaro de 5 de julho de 1857. Alguns dias antes, em 25 de junho de 1857, é lançada uma pequena coletânea de versos assinada por Charles Baudelaire, poeta pouco conhecido do grande público. Nessa época, Baudelaire é conhecido e apreciado por suas críticas de arte e suas traduções de livros de Edgar Poe. A publicação de seus poemas é esperada há muito tempo.

É seu amigo Auguste Poulet-Malassis, o “frango mal empoleirado”, como o apelidavam seus próximos, que edita o livro em mais de 1000 exemplares. A tarefa não foi cômoda: Baudelaire passa seu tempo corrigindo os textos. Finalmente, os poemas são divididos em 5 seções (Spleen e Ideal, O Vinho, Flores do Mal, Revolta e A Morte). Intitulado As Flores do Mal, a imprensa se inflama e denuncia a imoralidade do livro de Baudelaire.

O ídolo apodrece

Em 12 de julho de 1857, um novo artigo do Figaro endossa o de Gustave Bourdin: ele denuncia a “podridão” do livro. “Todos esses horrores mórbidos expostos friamente, esses abismos de imundícies cavados a duas mãos e as manchas levantadas deveriam mofar em uma gaveta maldita. Mas nós acreditávamos no gênio do Sr. Baudelaire, era preciso expor o ídolo há muito escondido à veneração dos fiéis. E eis que, no grande dia, a águia se transformou em mosca, o ídolo apodrece e os adoradores fogem cobrindo o nariz”, vitupera o jornalista Jules Habans.

Lembremos o contexto: estamos em pleno Segundo Império, sob o regime autoritário de Napoleão III. Os autores são regularmente vítimas da censura. O escritor Gustave Flaubert, no começo do ano de 1857, sofreu um repercutido processo literário por Madame Bovary.

Os raios da justiça

Esses críticos garantem, apesar de tudo, uma notoriedade a Charles Baudelaire, mas o conduzem também à justiça. Ele tenta, em vão, pedir a intervenção de seus amigos Théophile Gautier, Mérimée e Barbey d’Aurevilly. Em 16 de julho de 1857, a justiça recolhe As Flores do Mal e Baudelaire e seu associado Poulet-Malassis são perseguidos por ultraje à moralidade.

Em 20 de agosto de 1857, o procurador imperial Ernest Pinard condena o livro por “ultraje à moral pública e aos bons costumes”; Baudelaire e seu editor devem pagar multas pesadas. A obra tem seis textos extraídos de seu conjunto: As Joias, O Lete, A que está sempre alegre, Mulheres malditas, Lesbos e As metamorfoses do Vampiro.

Uma nova edição, acrescida de 35 poemas, será publicada em 1861. Baudelaire modifica sua obra, tornando a arquitetura do livro mais coerente. Poulet-Malassis arrisca uma tiragem clandestina: ele é punido com uma nova condenação. Em seguida, ninguém ousa reimprimir os poemas. Entretanto, em 1907, Le Figaro reporta, em 25 de dezembro de 1924: “Um tipógrafo iniciante, Sr. Crès, se atreve a imprimir uma edição das Flores do Mal, incluindo os textos proibidos. O que faria o ministério público? Ignorância real ou simulada. Ele não se mexeu”.

O julgamento só foi revisado em 31 de maio de 1949: sob o impulso da Sociedade dos Homens de Letras, um processo diante da Corte de Cassação reabilita Charles Baudelaire e seus editores.

Apesar de todos esses debates conduzidos em torno das Flores do Mal, isso não impediu o Figaro de ganhar um novo colaborador muito distinto alguns anos mais tarde. Em sua edição de 26 de novembro de 1863, é o mesmo Gustave Bourdin que anuncia: “O Sr. Charles Baudelaire é um poeta e um crítico que nós temos, em diversas ocasiões, criticado por suas duas funções, mas nós o temos dito frequentemente, e não deixaremos de repeti-lo, que abrimos as portas a todos aqueles que possuem talento, sem expor nossas opiniões pessoais nem comprometer a independência de nossos redatores antigos ou novos. O Pintor da vida moderna, estudo de alta crítica, muito curioso, profundo e original, comporá três novelas; o rodapé de nosso jornal é normalmente destinado a romances ou a novelas, e se nós desrespeitamos desta vez nossos hábitos, é com a convicção de que os leitores não ficarão descontentes”. A novela será publicada no Figaro em 26 e 29 de novembro e 3 de dezembro de 1863.

Redescubramos, abaixo, os dois artigos ácidos do Figaro no momento da publicação das Flores do Mal em 1857.

 

1. Artigo publicado no Figaro, em 5 de julho de 1857

Isto e aquilo

É hoje a vez das Flores do mal, do Sr. Charles Baudelaire, e das Cartas.

O Sr. Charles Baudelaire é considerado, há mais de quinze anos, um grande poeta, para um pequeno círculo de indivíduos cuja vaidade, saudando a Deus ou quase isso, era bastante comentada; eles se reconheciam inferiores a ele, é verdade, mas, ao mesmo tempo, se proclamavam superiores a todos os que negavam esse messias. Era preciso ouvir esses senhores apreciarem os gênios a quem nós dedicamos nosso culto e nossa admiração: Hugo era um preguiçoso, Béranger um pedante, Alfred de Musset um idiota e Madame Sand uma louca. Lassailly era chamado de Cristo miserável, Maomé vagabundo e Napoleão cretino. Mas nós não escolhemos nem os amigos nem os admiradores e seria demasiado injusto imputar ao Sr. Baudelaire extravagâncias que o teriam feito, mais de uma vez, dar de ombros. Ele só cometeu um erro, na nossa opinião: ter permanecido muito tempo inédito. Ele havia publicado apenas um relatório de Salon, muito elogiado pelos doutores em estética, e uma tradução de Edgar Poe. Há 15 anos, esperávamos então esse volume de poesias. Esperamos por tanto tempo que poderia ocorrer algo de semelhante ao que se produz quando um jantar demora demais a ser servido: aqueles que estavam com mais fome são os que mais rapidamente perdem o apetite – o horário de seu estômago foi vencido.

Não ocorre o mesmo com aquele que recebe. Enquanto os convivas esperavam com uma viva impaciência, ele jantava em outro lugar tranquila e saudavelmente e tinha o estômago bem guarnecido, se julgarmos à primeira vista. Mas eu deveria recomeçar.

Eu li o volume, não tenho julgamento a pronunciar, nenhum ajuste a recomendar, mas eis aqui minha opinião, que eu não tenho a pretensão de impor a ninguém.

Nunca vimos qualidades tão brilhantes serem estragadas dessa maneira. Há momentos em que duvidamos do estado mental do Sr. Baudelaire; há outros em que não duvidamos mais: é, na maior parte do tempo, a repetição monótona e premeditada das mesmas palavras, dos mesmos pensamentos. O odioso acompanha o ignóbil; o repulsivo se alia ao infecto. Nunca se viu morder, e mesmo mastigar, tantos seios em tão poucas páginas; nunca assistimos a uma semelhante aparição de demônios, de fetos, de diabos, de cloroses, de gatos e de vermes. Esse livro é um hospital aberto a todas as demências de espírito, a todas as podridões do coração; se ainda fosse para curá-las, mas elas são incuráveis. Um verso do Sr. Baudelaire resume admiravelmente seu estilo; por que ele não o transformou na epígrafe das Flores do mal?

“Eu sou um cemitério odiado pela lua.”

E, no meio de tudo isso, quatro obras, A Negação de São Pedro, depois Lesbos e duas que têm por título Mulheres malditas, quatro obras-primas da paixão, da arte e da poesia; mas, é possível e necessário dizer: se compreendemos que há 20 anos a imaginação de um poeta pudesse se deixar levar a tratar de assuntos assim, nada pode justificar que um homem de mais de 30 anos tenha feito publicidade de um livro com semelhantes monstruosidades em seu conteúdo.

Por Gustave Bourdin

 

2. Artigo publicado no Figaro em 12 de julho de 1857

Semana Literária

Com o Sr. Charles Baudelaire, é de pesadelo que é preciso falar. As Flores do mal, que ele acaba de publicar, são destinadas, segundo o autor, a expulsar o tédio “que sonha com a forca, fumando seu cachimbo”. Mas o autor não percebeu que ele substituía o bocejo pela náusea.

Quando fechamos o livro após tê-lo lido inteiro como eu acabo de fazer, permanece no espírito uma grande tristeza e uma terrível fadiga. Tudo o que não é horrível é incompreensível, tudo o que se compreende é pútrido, seguindo o discurso do autor.

Eu abriria uma exceção, entretanto, para as cinco últimas estrofes da obra intitulada Don Juan no Inferno. O resto é muito apimentado para o meu gosto.

Todos esses horrores mórbidos expostos friamente, esses abismos de imundícies cavados a duas mãos e as manchas levantadas deveriam mofar em uma gaveta maldita. Mas nós acreditávamos no gênio do Sr. Baudelaire, era preciso expor o ídolo há muito escondido à veneração dos fiéis. E eis que, no grande dia, a águia se transformou em mosca, o ídolo apodrece e os adoradores fogem cobrindo o nariz.

Custa muito caro brincar de grande homem reservado e de não saber elaborar essas elucubrações marteladas a frio na raiva da impotência. Nós conseguimos nos fazer captar pelas palavras quando lemos:

“Minha alma está rachada, e quando, em agonia,

Quer povoar de canções o azul da noite fria,

Ocorre muita vez que a voz se lhe enfraquece

Como o espesso estertor de um corpo que se esquece,

Junto a um lago de sangue e de humanos destroços,

E que sucumbe, inerte, entre imensos esforços.”

 

Como é verdade, tudo isso! E como eu dou razão ao Sr. Baudelaire, quando ele se julga assim.

Façamos, então um réquiem, e não falemos mais nisso.

Por J. Habans

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