Está pensando em publicar algo, jovem escritor? Entenda um pouco como funciona o mercado editorial brasileiro
“Tudo é escrita, ou seja, fábula. Mas para que nos serve a verdade que tranquiliza o honesto proprietário? A nossa verdade possível tem de ser invenção, é dizer, escritura, literatura, pintura, escultura, agricultura, piscicultura, todas as turas deste mundo. Os valores, turas, a santidade, uma tura, a sociedade, uma tura, o amor, pura tura, a beleza, tura de turas”.
Julio Cortázar, Rayuela
2016, o ano que não terminou
O ano de 2016 não terminará apenas como um período marcado por profundas crises que vão da economia à política. O historiador Fernand Braudel chamava esses fenômenos de história de curta duração. Concomitante a isso, há uma história de longa duração, que se passa no cotidiano, que é o tempo da mudança, que é mais lento, obedece a outra temporalidade. Dentro da longa duração, o livro impresso e, por consequência, a literatura passam por uma crise mais duradoura e profunda. Quero destacar quatro episódios bastante emblemáticos desta crise ocorridos neste ano.
O mais recente foi o Prêmio Nobel concedido ao cantor e compositor Bob Dylan. Sem entrar no mérito da justiça ou injustiça no julgamento da obra do autor laureado, o recado dado pela Academia Sueca foi sintomático: a literatura não se faz apenas nos livros. Homero, Safo e o trovadorismo são prova disso. Outro episódio envolve a Bienal do Livro em São Paulo dominada por jovens e adolescentes youtubers e celebridades, migradas de outras áreas do entretenimento, que lançavam e comercializavam obras voltadas ao seu público restrito de fãs, importados de outras mídias para o mercado livreiro. A última FLIP, com seu modelo mercadológico e massificado, neste ano foi um pouco mais ousada e resolveu ter Ana Cristina Cesar como tema, uma autora pouco conhecida do grande público sempre ávido por músicos e celebridades; resultado: foi um fracasso de bilheteria. Por fim, na contracorrente dos ditames do mercado, o Prêmio Camões foi outorgado à obra de Raduan Nassar, que é provavelmente nosso maior escritor vivo. O irônico e o espetacular se encontram no fato do grande autor ter abandonado a literatura e sua gigantesca obra se resumir a dois romances curtos e alguns contos escritos há mais de trinta anos.
Escritores e o livro impresso vivem uma crise sem precedentes. Além da mídia de massa, dos dispositivos tecnológicos e das mídias sociais que rivalizam com o livro o tempo do ócio, as novas técnicas de impressão, que poderiam emancipar a literatura, atiraram-na no abismo. No século XVI, Francis Bacon saudou o invento de Gutemberg como uma verdadeira revolução no campo do saber, porque com o advento da imprensa, o conhecimento poderia ser disseminado e compartilhado com o público leitor. No século XVIII, Diderot editou a Enciclopédia, com a colaboração de D’Alembert, Montesquieu, Voltaire, Rousseau, dentre outros, como uma obra revolucionária, propagadora do iluminismo filosófico-científico. O século XIX foi o século dos grandes romancistas: Balzac, Flaubert, Dickens, Tolstoi, Dostoievski, Eça de Queiroz, Machado de Assis. Na época de Balzac, os escritores sofriam os efeitos da pirataria semelhantes aos que músicos e cineastas hoje sofrem. O século XX foi a era das grandes transgressões e revoluções estéticas: o dadaísmo, o surrealismo, Joyce, Kafka e Proust.
E o século XXI?
No plano da cultura, o século XXI já começou na década de 1990 com a hegemonia do pensamento neoliberal. A partir desta década começamos a lidar com um termo antigo, mas com configuração nova: o mercado.
Desde então, o mercado passou a regular não apenas as atividades econômicas, como os discursos, a cultura e o comportamento. A literatura e os escritores não passaram ilesos nesta nova ordem. Embora o século XX tenha sido artística e esteticamente radical e transgressivo, os grandes escritores, ao contrário do século XIX, não eram aqueles que vendiam mais livros; paralelos às transformações no interior da estética literária, surgiram os autores best-sellers – pouco preocupados com a arte, suas ambições eram voltadas às grandes vendagens e ao mercado consumidor.
Durante o século XX, as editoras tradicionais tentaram equilibrar eventuais prejuízos mantendo escritores e best-sellers em seu catálogo. Isso não evitava riscos de edições encalhadas e os saldões de ponta de estoque para vender essas obras. Era a época de tiragens entre mil e três mil livros, que levavam anos para serem vendidas.
O século XXI trouxe novas impressoras que podem fazer pequenas tiragens. Neste contexto, surgiu o que tenho chamado de “editora sem risco”, autodenominada editora on demand ou sob demanda. O que vem a ser este novo modelo de editora e nova profissão? Nada de novo. O contexto anterior não era um paraíso terrestre. Muito longe disso. As editoras tradicionais tinham mecanismos problemáticos de seleção de originais, muitas vezes não liam o que recebiam e, quando muito, mandavam uma carta padrão, com um texto padronizado manifestando sua absoluta falta de interesse. Isso criou um verdadeiro contingente de autores não publicados. Muitos recorreram à autoimpressão em gráficas. Imprimir em uma gráfica trazia essencialmente quatro problemas: a) tiragem mínima de mil exemplares; b) todo o trabalho técnico era feito pelo autor: revisão, diagramação, capa, etc; c) gráficas não publicam e distribuem; d) cabe ao autor vender seus exemplares. Todo o processo é financiado pelo autor. Foi nesta fissura entre gráfica e editora tradicional que as on demands se instalaram.
Walter Benjamin astutamente percebeu que uma das características da modernidade é dar ares de novidade para algo que não tem nada de novo, é apenas o velho com outra roupagem. O que as editoras on demand trazem tem poucas diferenças para as gráficas: a) a tiragem cai para cem a duzentos livros, mas o preço por exemplar aumenta, já que as editoras on demand não conseguiram superar o axioma gráfico “quanto mais volumes impressos, mais barato o preço do exemplar”; b) a revisão, diagramação, projeto gráfico, capa são serviços feitos à parte pela editora, porém quem paga é o autor ou este estará embutido no preço de capa; c) apesar do discurso, editoras on demand não têm o grande poder de distribuição que as editoras tradicionais têm para colocar o livro na prateleira de uma rede de livrarias, o máximo que conseguem é disponibilizar o livro no catálogo online; d) em geral, por contrato, o autor se compromete a vender ou, na pior das hipóteses, adquirir um número mínimo de livros, os cem ou duzentos impressos. Ou seja, o ônus é do autor, o bônus do editor. A esta relação desigual chamam de parceria. Caso o autor consiga vender mais, a editora irá imprimir de acordo com a demanda. Isso não se difere em nada da produção just-in-time adotada por montadoras automobilísticas em que os carros são produzidos por encomenda.
Mas qual é o problema deste modelo?
Para a empresa automobilística e para o editor nenhum, porque não haverá problema de mercadoria encalhada no estoque. Tudo o que é produzido é vendido. Porém, diferente da indústria automobilística, um escritor brasileiro, comum, não dispõe de campanhas de marketing, tampouco de uma cultura que torna o livro uma necessidade para o mercado consumidor. O livro no Brasil nunca foi reverenciado como elemento constitutivo da nossa cultura. O brasileiro se identifica mais com outras manifestações culturais. Antônio Cândido comenta que saltamos da cultura oral para a cultura audiovisual sem passar pela cultura livresca.
Diante dessa lógica de mercado, o escritor, que pode ter levado anos e anos para escrever um livro, se vê obrigado a agregar a competência de vendedor para o qual não tem a menor aptidão. O mercado não compreende que ser escritor não é ter a competência para vender um livro – porque vender um livro não é vender Avon, Tupperware ou Jequiti. Ser escritor não é converter amigos e parentes em potenciais compradores, fazer da mídia social um panfleto autopromocional. Mesmo que o escritor tenha cem amigos e duzentos parentes predispostos a pagar por seu livro, não se trata de um alcance muito limitado?
Este cenário cria o que denomino darwinismo literário. Os mais aptos de acordo com a lógica de mercado sobreviverão. Daí a aposta do mercado nos youtubers e celebridades ou em autores já consagrados. No atual cenário on demand, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Leminski, Ana Cristina Cesar, Caio Fernando Abreu, Raduan Nassar, para citar alguns exemplos, jamais seriam conhecidos, porque não estariam seguindo a lógica de mercado, porque estariam restritos a um nicho de poucos leitores como é a “via de regra” de quase todo escritor iniciante.
O mercado não produz arte, produz mercadoria. Portanto, não há nada mais problemático que o mercado como mediador entre o escritor e o leitor, porque o mercado é conservador quando é seu o investimento e especulativo quando o investimento é do outro. Seja a editora tradicional ou a editora just-in-time, chamada de on demand. O Youtube ainda não revelou nenhum Rimbaud. Dentre as atuais celebridades, não há nenhum Baudelaire. Um livro impresso ou não, antes de ser uma mercadoria, é um objeto da cultura. Há uma história de longa duração na literatura, uma longa tradição que transcende a sociedade de mercado, que nunca foi objeto de consumo, que está nos cantos de Homero e dos trovadores, muito antes das tipografias rodarem, muito antes que as pedras suecas rolassem.
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Este artigo é dedicado a Massao Ono, editor que descobriu e publicou pela primeira vez dois poetas desconhecidos: Hilda Hilst e Roberto Piva.