O gênero textual tirinha
Os gêneros do discurso, de acordo com BAKHTIN (2011), são “tipos relativamente estáveis de enunciados” elaborados por “cada campo de utilização da língua”. Esses enunciados são individuais, mas “determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação” e são compostos por três elementos principais: o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional (p.262).
Esses enunciados que são produzidos nas diferentes esferas de atividade humana materializam-se em textos – os gêneros textuais – que são classificados de acordo com a função comunicativa a que se destinam e a estrutura composicional. Os “campos de utilização da língua” ou as esferas de atividade (a esfera jornalística, a jurídica, a comercial, entre outras) produzem textos orais e escritos como, por exemplo, notícias, editoriais, entrevistas, conferências, contratos etc.
Dentre os diversos gêneros textuais produzidos na esfera jornalística, existem os que trabalham com a ironia e o com o humor. Entre esses estão os quadrinhos, as charges, e as tirinhas, que são muito parecidos em sua composição, mas não são o mesmo gênero; cada gênero possui suas características e suas funções. Geralmente são publicados em jornais diários, seguindo uma sequência narrativa ou não, e que pode ser de cunho opinativo ou de diversão. A tirinha do Dilbert, por exemplo, é publicada em vários jornais diários e aborda com humor as questões da vida corporativa.
Algumas dessas tirinhas apresentam questões sobre a vida, sobre a política, educação etc, como é o caso das tirinhas da Mafalda.
Figura 2: 10 anos com Mafalda. Quino. 2010 (p.66)
Figura 3: 10 anos com Mafalda. Quino. 2010 (p.66)
A tirinha do Rango
No Rio Grande do Sul, um dos mais importantes “escritores” de tirinhas é o criador do personagem Rango, Edgar Vasques.
Vasques é chargista, cartunista e aquarelista, conforme informações do site da editora L&PM Editores, que publicou pela primeira vez o seu trabalho em 1974 e todos os outros livros e coletâneas do autor. Edgar Vasques criou o Rango na década de 70, inicialmente para um jornal da faculdade de arquitetura da UFRGS e posteriormente, o personagem fez sucesso em jornais do Brasil e do exterior.
No trabalho de Edgar Vasquez é possível perceber a crítica social e a denúncia dos mais sérios problemas que afligem a população brasileira e, embora deva ser considerado o contexto político e social de cada tirinha, a obra, de forma geral pode ser considerada atemporal, pois que alguns problemas destacados por Vasquez durante a ditadura, que parecem amenizados nesta década, perduram quando analisados à luz de questões fundamentais como a ética e os direitos humanos.
As tirinhas aqui apresentadas fazem parte do livro O gênio Gabirúde 1998, com um tipo de traço (pois o Rango foi desenhado com outro traço inicialmente) e com assuntos relacionados principalmente às questões política e econômica do Brasil. Nos trabalhos posteriores, Vasques alterou o traço do desenho, mas as questões permaneceram, embora cada trabalho tenha sido contextualizado à época da publicação.
A análise do estilo da tirinha do Rango busca na teoria dos gêneros discursivos a sua fundamentação. BAKHTIN (2011) diz que “Todo estilo está indissoluvelmente ligado ao enunciado e às formas típicas de enunciados, ou seja, aos gêneros do discurso. Todo enunciado […] é individual e por isso pode refletir a individualidade do falante (ou de quem escreve), isto é, pode ter estilo individual.” (p.265)
É possível perceber essa individualidade no texto de Edgar Vasques manifestada principalmente pelo seu posicionamento de denúncia em relação aos problemas da sociedade brasileira. O personagem Rango mora num lixão, vive em miséria e o seu estômago “manifesta-se”: está sempre roncando, denunciando a fome extrema. Os demais personagens moradores do lixão dialogam com o Rango sobre as mais variadas questões: política, economia, (a falta de) segurança, a miséria, entre outros, e a fome, questão sempre presente.
Análise das tirinhas do Rango
Figura 4:O Gênio Gabirú, 1998. (p.9)Nessa tirinha, Rango conversa com o filho sobre a seca. O sentido do texto é perfeitamente identificável pela maioria dos leitores brasileiros, que está acostumada a ouvir as notícias das secas alarmantes no nordeste do país[1]. Vasques manifesta-se através da fala do Rango associando a falta de políticas adequadas para a solução do problema da seca à falta “de integridade dos poderosos”. Aqui já é possível verificar o posicionamento do autor em relação à política que ignora as necessidades do povo, pela escolha do léxico: “nem um segundo (tempo dedicado à solução do problema) de integridade”.
Figura 5:O Gênio Gabirú, 1998. (p. 13)Na tirinha acima, o personagem é o Véio Dica que mora numa lata de lixo. Véio Dica “faz o contraponto da autoridade divina, dado pela sabedoria que – faz anos – está na lata de lixo”[2]. Nesse texto é possível perceber a intertextualidade entre os “miseráveis” do Brasil e a obra Os miseráveis de Victor Hugo. Edgar Vasques remete o leitor a outra questão política, que é a ausência de um trabalho do governo em prol dos miseráveis brasileiros e ironiza a (falta de) atenção do governo em relação ao povo, ao citar o ilustre Victor Hugo, que dedicou uma obra de cinco volumes para retratar as mazelas e dificuldades dos pobres, forçados a cometem crimes pela situação social que os aflige, em busca do escasso alimento, como é o caso do personagem principal Jean Valjean. Pode-se inferir que, no Brasil, não há qualquer consideração pelos pobres, pelos miseráveis, cujo número atingiu espantosos “trinta e dois milhões” em razão das políticas econômicas que os ignoram. Essa tirinha faz parte do álbum de 1998, então é preciso contextualizá-la, pois nos últimos anos algumas políticas governamentais têm alcançado parte da população mais pobre com programas como o Bolsa Família e esse número parecer ter-se reduzido:
10,5 milhões vivem com R$ 39 por mês
No Brasil, é contabilizado um total de 16,267 milhões de miseráveis – quase a população do Chile. Destes, 5,7 milhões moram em domicílios com rendimento de R$ 1 a R$ 39 mensais. Somados aos 4,8 milhões que não têm nenhuma renda, são 10,5 milhões de pessoas, o equivalente à população do estado do Paraná, vivendo com até R$ 39 por mês. O Censo de 2010 aponta 4 milhões de domicílios miseráveis no País: 1,62 milhão deles sem renda, e outros 1,19 mil, com renda de R$ 1 a R$ 39[3].
Ainda assim, a crítica do Véio Dica é atual considerando-se a falta de ética e a politicagem que consomem os recursos públicos destinados a tais programas, de maneira que num país com a riqueza do Brasil ainda existam tantos miseráveis.
Figura 6: O Gênio Gabirú, 1998. (p. 28)Na figura 6, o assunto é a violência (gratuita) da PM, que é o órgão do governo que deveria zelar pela segurança pública. Trata-se, portanto, da inadequação da polícia, da falta de preparo e de ética profissional e do crime de corrupção que assola a corporação. Infere-se que seja violência “gratuita” pela resposta do atirador: morreram simplesmente “porque estavam vivos”. Não há uma razão além da “vontade” do atirador, que está vestindo uma máscara geralmente usada por criminosos o que permite que se leia como corrupção: a polícia corrompida pelo crime, o crime vestido de polícia. Edgar Vasques apresentou este texto há alguns anos e é possível afirmar que é um tema atual, diante das atrocidades que são noticiadas diariamente, de envolvimento de policiais em gangues de extermínio, tráfico de drogas e outros crimes hediondos.
Figura 7: O Gênio Gabirú, 1998. (p. 57)Na figura 7, a palavra monopólio está destacada e há um aparelho de televisão de onde se “ouve” plimplim, som característico dos intervalos nas programações da Rede Globo de Televisão. Há uma associação entre esses elementos e a fala do Rango: um poder capaz de transformar pessoas em macacos paralíticos, o que denota a opinião do autor sobre a Rede Globo, sobre o monopólio que esta rede possuía nos meios de comunicação. A questão do contexto é importante, novamente, pois esse monopólio parece não possuir a força do passado, em razão do avanço de cobertura das demais redes de televisão. No entanto, a atemporalidade da tirinha sobrepõe-se se forem considerados os milhões de brasileiros que assistem (e aceitam) passivamente todo e qualquer tipo de programa sem se darem ao trabalho de refletir sobre a qualidade da informação que estão consumindo, suas fontes etc. e ainda as questões políticas atuais que norteiam a mídia:
“Em entrevista ao Portal Vermelho, o presidente do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e secretário nacional de Mídia do PCdoB, Altamiro Borges, explica que o critério adotado pelo governo para a distribuição das verbas de publicidade reforça o monopólio midiático no país.
“Ao invés de dar dinheiro para rádios e TVs comunitárias, veículos de trabalhadores, de bairros e de estudantes, esse recurso se desloca apenas para sete famílias que já concentram a mídia brasileira. Por outro lado, no caso da rádio difusão, como não há qualquer legislação, você dá dinheiro para quem manipula a opinião pública”[4].
Todos os textos das tirinhas conduzem à reflexão sobre problemas sociais e políticos, demonstrando o posicionamento do autor, que critica o descaso das autoridades (como na figura 4), que denuncia sérios problemas sociais (como na figura 6) e discursa sobre um “poder” dominante (figura 7).
O estilo nas tirinhas do Rango
É possível verificar que Edgar Vasques manifesta sua opinião através das falas do Rango, criticando e denunciando os problemas enfrentados pela população brasileira. É o que se pode identificar como marca autoral (BRAIT, 2008, p.89). As falas do Rango seguem a norma culta da língua, a escolha do léxico e da disposição do texto, as frases curtas e os elementos visuais solicitam do leitor mais do que uma leitura superficial e exigem um leitor letrado: o que o texto diz não é só aquilo que está escrito. Esses elementos constituem, também, parte do estilo, como diz BAKHTIN (2011, p.269): “Porque a própria escolha de uma determinada forma gramatical pelo falante é um ato estilístico”.
Outro elemento importante constitutivo do estilo, podemos ver em BRAIT (2008) que afirma que, de acordo com o pensamento bakhtiniano, o “estilo depende do modo que o locutor percebe e compreende seu destinatário, e do modo que ele presume uma compreensão responsiva ativa” (p.95). Considerando este aspecto, e considerando que Vasques iniciou suas publicações no âmbito acadêmico e prosseguiu seu trabalho em jornais de oposição à ditadura e posteriormente em jornais sindicais, seria possível inferir do texto de Vasques que a reação esperada de seu destinatário seja a indignação, a revolta e o posicionamento diante dos fatos denunciados. Essa reação “esperada” também faz parte do conceito bakhtiniano de estilo no sentido de que
“ele não pode separar-se da ideia de que se olha um enunciado… como participante, ao mesmo tempo de uma história, de uma cultura e, também, da autenticidade de um acontecimento, de um evento” (BRAIT, 2008, pg.96)
O autor do Rango, ao “exigir” de seu leitor a compreensão do dito e do não dito trabalha não só “com palavras, mas com os componentes do mundo, com os valores do mundo e da vida” (BRAIT 2008, pg.87).
Considerando a afirmação de BAKHTIN (2011) de que “o estilo integra a unidade de gênero do enunciado como seu elemento” e de que
“o estilo é indissociável de determinadas unidades temáticas…e composicionais: de determinados tipos de construção do conjunto, de tipos do seu acabamento, de tipos da relação do falante com outros participantes da comunicação discursiva” (p.266)
É possível verificar que, com o Rango, Edgar Vasques manifesta seu estilo de crítico e de denunciante das misérias sociais brasileiras, utilizando-se de um gênero que possui, de forma geral, a característica de divertir pelo cômico e pela ironia. Em Vasques, no entanto, a ironia parece ter por finalidade “gritar” que a política brasileira (de forma geral, pois há tiras do autor com referências a assuntos internacionais) é corrupta e a “produtora” da miséria reinante no país.
Referências
VASQUES, Edgar. O Gênio Gabirú. 1998: Trinta anos de traço. Ilustrações do autor. Porto Alegre: L&PM, 1998.
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. Prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov; introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. – 6ª ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
QUINO. 10 anos com Mafalda. Tradução Mônica Stahel. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção Textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
http://www.uel.br/eventos/eneimagem/anais2011/trabalhos/pdf/Ana%20Maria%20KOCH.pdfacessado em 16 de setembro de 2012.
http://www.lpm-editores.com.br/site/default.asp?TroncoID=805134&SecaoID=948848&SubsecaoID=0&Template=../livros/layout_autor.asp&AutorID=99 acessado em 16 de setembro de 2012.
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/05/16/com-maior-seca-em-decadas-nordeste-revive-era-de-exodo-e-fuga-do-campo.htm acessado em 29 de setembro de 2012
http://www.correio24horas.com.br/noticias/detalhes/detalhes-1/artigo/bahia-tem-o-maior-numero-de-miseraveis-em-todo-o-brasil/ acessado em 29 de setembro de 2012
http://cafecompao.acholegal.com/tag/dilbert) acessado em 30 de setembro de 2012.
http://lobotomiamidiatica.blogspot.com.br/2012/09/denuncia-distribuicao-de-verbas.html acessado em 30 de setembro de 2012.
[1]Notícia no site Uol publicada em 16/05/2012: “Com maior seca em décadas, Nordeste revive era de êxodo e fuga do campo.”
[2]Humor político em tiras: Rango. Ana Maria KOCH. Universidade Federal do Piauí / UFPI; CAPES; FAPEPI; CNPq
[3] Notícia de 20/06/2011: http://www.correio24horas.com.br/noticias/detalhes/detalhes-1/artigo/bahia-tem-o-maior-numero-de-miseraveis-em-todo-o-brasil/
[4]http://lobotomiamidiatica.blogspot.com.br/2012/09/denuncia-distribuicao-de-verbas.html
[facebook] [retweet]