
Evang`Hélio pagão (a fonética diz tudo evangelho, onde toda forma de arte é doutrina; pagão – a obra de Hélio Oiticica não foi, não é, e jamais será batizada) lembra uma história que talvez explique o porquê de tão poucos críticos de arte se debruçarem sobre a criação (a palavra é criação, já que segundo Décio Pignatari, arte é um preconceito cultural) de Oiticica.
Vamos à história: em 1968, numa mesa redonda, no MAM do Rio de Janeiro. Hélio Oiticica escandalizou os debatedores ao cotejar uma passagem de Cristo nos Evangelhos com uma imagem lisérgica. E foi mais longe, propôs que a ceia de Cristo havia sido um “barato”. O que esperar dele? Aliás, o que esperar do inventor dos parangolés? O criador dos bólides? (inspirados num amontoado de latas). Do difusor do monocromatismo, em que fundo e forma misturam-se, uma vez que pintar se confunde com pintura. Do idealizador, em 1960, do primeiro módulo dos núcleos e os penetráveis (os núcleos objetos pendentes, os penetráveis desvendam uma atmosfera total, pondo o sujeito em uníssono com o revelar da obra).

Oiticica engorda o rol dos artistas brasileiros valorizados mais no exterior do que nos trópicos – foi pintor, escultor, artista plástico e performático de aspirações anarquistas –, apesar de ser radicalmente equatorial. Suas experiências em Nova York, Londres, Pamplona etc – bem como afinidades com Gertrude Stein, Marshall Mcluhan, Buckminster Fuller, John Cage – não o desvirtuaram de sua concepção com o marginal, livre das influências acadêmicas, com a dança (sobretudo o samba) como ato expressivo máximo. Ao contrário, possibilitou uma releitura de sua obra, transformando-se num criador profundamente inteirado com os anseios de sua terra.
Waly Salomão com sua prosa montanha-russa assim o descreve: “Berimbolou geral mas malandro pedra noventa não bobeia, pedra que rola não cria musgo. Rola e não cria limo. Era a hora do pinote e Hélio sempre se gabou de ser o Rei do Pinote. Também vivendo situações-limite que exigiam dele manter seus poros abertos na captura dos sinais, uma espécie de código de escoteiro contracultural sempre alerta para a possibilidade da barra sujar, da polícia chegar pedindo babulaque”.
Hélio Oiticica era o arquétipo do artista anticonsensual. Precisava dos vícios como quem precisa dormir. Inseto e inseticida eram a mesma personagem. Conseguir ser mais eloquente só apelando para a poesia: “Um vício só somente só para mim não basta / uma inflação de amor incontrolável por meu corpo alastra / tá lotado, tá repleto de virtude e vício o meu céu / um galo sozinho levanta a crista e cocorica seu escarcéu / um vício só, somente só, é pura cascata”. É isso.