
Em O Fantasma da Liberdade, vemos como o surrealismo de Luís Buñuel virou o mundo de ponta-cabeça para desnudar nossas idiossincrasias.

Os critérios para o cômico
O comediante e escritor português Ricardo Araújo Pereira, em seu manual de escrita humorística A doença, o sofrimento e a morte entram num bar, prescreve que há seis técnicas básicas para criar algo engraçado.
Embora não se deva levar o texto a um nível tão técnico, pois estamos falando de humor, vamos citar um exemplo. Uma delas é a ideia de “virar uma coisa de pernas para o ar”, que, em suma, significa subverter os sentidos de algo a fim de que um novo e inesperado sentido surja, gerando o efeito cômico.
Mas Ricardo ressalva que a graça só é percebida por quem conhece os parâmetros originais da coisa invertida, indicando que mesmo num absurdo subsiste a lógica, ainda que outra. E é justamente na descoberta dessa nova racionalidade, contraposta à antiga, que reside a piada.
“O fantasma da liberdade”
Quarenta e três anos antes desta tentativa de teorização sobre as formas de fazer comédia, Luís Buñuel levava ao extremo a técnica citada pelo humorista português e criava aquele que viria a ser, senão o melhor, o mais hilário dos seus filmes.

Falo de O Fantasma da Liberdade, penúltimo de uma sequência de longas devotados especialmente ao surrealismo. O cineasta fora um dos maiores expoentes do movimento.
O surrealismo também se manifesta no filme, embora não tanto como o automatismo psíquico apto a desnudar o inconsciente do qual falava André Breton em seu manifesto, mas como elemento circundante de uma narrativa que se pode até mesmo admitir linear, porém nunca convencional.
O enredo (se é que há): subversão ou equivalência?
O filme consiste em uma série de esquetes interligadas por obra do acaso (ou nem tanto), em que personagens de diversos espectros da sociedade encaram os absurdos de um mundo cujas convenções apresentam-se viradas do avesso.
A sátira de Buñuel não poupa aqueles que sempre foram seus alvos mais corriqueiros – a Igreja, a burguesia e as figuras de autoridade de maneira geral –, mas parece que aqui a crítica abrange uma gama maior de elementos.
Isso denuncia talvez um desejo de atingir a humanidade como um todo, expondo o ridículo a que estamos todos submetidos diante da arbitrariedade de nossas regras e comportamentos. Por que, então, não virar tudo isso de pernas para o ar e ver no que dá?
Exemplos e pequenos spoilers
Um exemplo (atenção para o spoiler): logo no início do filme, há uma cena em que, enquanto brincam em uma pracinha, duas meninas são abordadas por um homem de ar misterioso, que lhes entrega um envelope contendo fotografias, e adverte-as: “não as mostrem a nenhum adulto!”.
Uma das garotas chega em casa e entrega o envelope aos pais, que ficam escandalizados ao tomar conhecimento de seu teor. A câmera então, subvertendo todas as expectativa possíveis, revela o motivo de tamanha repulsa: são cartões postais ilustrando famosos pontos turísticos parisienses, os quais representam obscenidade tal que merecem apenas como destino a lata de lixo.
Mais um exemplo (atenção para o segundo spoiler): em outra cena, os pais de uma aluna são chamados à escola devido a seu desaparecimento. Na sala de aula, a filha corre para os braços da mãe. Ela é repreendida, pois a mulher está envolta em um assunto mais importante: o próprio sumiço da menina.
A família vai à polícia. O delegado pede ao sargento que olhe bem para a criança a fim de assimilar suas características físicas, e que a procure por toda a cidade. O caso não é solucionado de imediato. Quatorze anos depois a menina reaparece. Mas, em verdade, ela sempre esteve ali.
Os paralelos com a própria realidade
O mundo subvertido de Buñuel talvez carregue consigo a ideia de que a liberdade não passa de ilusão.
É algo como um fantasma que está sempre à espreita, mas que só tem condições de existir em termos ficcionais. Entretanto, não há como negar que, por vezes, o filme faz rir não pelo irreal em si, mas pelo tanto que se assemelha a padrões que verificamos no lado externo da obra, quer dizer, na própria realidade.
A propósito, longe de mim supor que o cineasta espanhol previu o Brasil atual, mas vemos na tela cenas familiares demais para ser ignoradas.
Por exemplo (terceiro spoiler): um pelotão militar é retratado como um grupo de colegiais travessos em uma sala de aula.
Ou então, retornando à universalidade dos temas trazidos por Buñuel: o que de surreal há em se constatar, tomando como parâmetro qualquer período histórico, a hipocrisia das instituições sociais e a prevaricação das autoridades públicas?
Enfim, quão absurdo seria apontar para a cegueira generalizada que, por vezes, assola uma sociedade, impedindo-a de enxergar o óbvio e compelindo-a a tomar as mais estúpidas decisões?
O mundo estava ao contrário e Buñuel reparou
Tais ideias trazem novamente para a reflexão a proposição de Ricardo Araújo Pereira, segundo a qual uma coisa invertida faz rir porque gera uma lógica nova. É algo como um pensar surpreendente sobre aquela mesma coisa – e a surpresa é a essência de qualquer piada.
Mas o cerne dessa teoria, assim como parece suceder em O Fantasma da Liberdade, reside não no novo, mas no conhecido. Nesse sentido, talvez o humor não esteja na inversão, mas sim no fato de que, somente através da inversão, a coisa original se desnuda sem filtros diante dos olhos de quem assiste.
É a conclusão do humorista: o mundo do avesso pode fazer sentido, às vezes até mais do que o mundo original.
Assim, o surrealismo deste Buñuel experiente, quase no fim de sua prodigiosa carreira, não está mais preso ao onírico, a ideias que só se explicam pelo filtro do inconsciente, mas sim a uma linearidade que, ainda que fragmentada – e por mais irônico que possa parecer –, mantém-se no nível da lucidez.
Por isso, as inversões propostas no filme fazem tanto sentido que só podem significar uma coisa: que o mundo já estava às avessas antes de ser virado do avesso (PEREIRA, 2017, p. 64).

O Fantasma da Liberdade subverte e faz rir, seguindo à risca os paradigmas de uma boa comédia. Mas Buñuel é mais do que isso.
Portanto, assistir a O Fantasma da Liberdade é como limpar uma janela embaçada para ter acesso às mais singulares paisagens, e, no fim, perceber que o que se desembaçou era, na verdade, um espelho. É, enfim, um exercício de reconhecimento através da contradição – uma contradição tão surreal que só poderia chamar-se humanidade.
Referência:
PEREIRA, Ricardo Araújo. A doença, o sofrimento e a morte entram num bar. Uma espécie de manual de escrita humorística. Rio de Janeiro: Tinta-da-China Brasil, 2017.