Baricco mostra a nós, leitores, o quanto somos compostos por histórias extraordinárias, o quanto “essa busca pelo poder transformador da palavra” pode nos tornar mais próximos, mais humanizados.
Para quem é amante da boa literatura e ainda não conhece o autor Alessandro Baricco, recomendo que procure, urgentemente, por sua obra. Baricco é italiano de Turim, nascido em 1958, sendo considerado um dos grandes destaques da literatura contemporânea de seu país. O autor escreveu narrativas relevantes como o maravilhoso Seda, traduzido para inúmeros idiomas; Oceano Mar; Mundo de Vidro, Novecento e o mais recente Mr. Gwyn. O monólogo Novecento ficou bastante conhecido quando foi para as telas do cinema com o título de A lenda do pianista do mar, de Giuseppe Tornatore. O livro Seda também virou filme, com direção de François Girard.
Seu último título, Mr. Gwyn, lançado no Brasil neste ano, fala do relevante papel do fazer literário e, principalmente, da importância do redescobrimento das relações humanas, tudo com muita sensibilidade. O livro, composto por 68 capítulos, narra em terceira pessoa a história de Jasper Gwyn, um escritor inglês mundialmente famoso que não quer mais escrever. O autor abandona a literatura para encontrar algo mais profundo que ela. Mr. Gwyn principia sua recusa literária a partir de um artigo que escreve para o “Guardian”, no qual é colaborador.
Em tal publicação, Jasper elabora uma lista de 52 coisas que não fará mais na vida. Dentre algumas curiosidades, Gwyn escreve:
“[…] não fará mais artigo algum para o Guardian; não posará para fotos de maneira pensativa, tal fazem os escritores e não escreverá ou publicará mais livros.”
Quando o artigo do autor é publicado, seu agente Tom Bruce pensa que é apenas uma crise, uma excentricidade do escritor, mas Jasper está determinado e desaparece, indo passar uma temporada em Granada. Após 2 meses na Espanha, Gwyn retorna a Londres, lugar em que começa a viver como anônimo, fazer coisas de anônimo. Quando alguém o reconhecia, negava ser o escritor.
Algo, porém, lhe acontece, Jasper começa a sentir um incômodo por não escrever; ao mesmo tempo, não quer abandonar sua meta. A primeira solução que encontra para sua angústia é elaborar narrativas mentalmente:
“[…] começou a escrever mentalmente, enquanto caminhava, ou deitado na cama, luz apagada, esperando o sono. Escolhia palavras, construía frases. Podia lhe acontecer prosseguir durante dias atrás de uma ideia, chegando a escrever na cabeça páginas inteiras, que depois gostava de repetir, às vezes em voz alta.” (página 23)
O escritor, então, cogita algumas atividades e lhe ocorre que poderia ser copista, não sabia exatamente do quê. Ao ir a uma galeria de arte, pensa em ser um retratista, mas não da maneira costumeira, ele escreveria retratos. Tal ideia torna-se uma meta para o escritor, o que o leva a alugar uma sala para fazer seu ateliê. A primeira pessoa que lhe vem à mente, para ser retratada, é Rebecca, a estagiária de seu agente Tom. Jasper encontra-se com a moça e propõe tal experiência, que consistia em frequentar seu estúdio durante 30 dias, ficando aproximadamente 4 horas absolutamente nua e, de preferência, sem falar com ele. A estagiária, apesar de surpresa, aceita a proposta.
A intensa convivência entre Rebecca e Jasper é descrita numa sequência longa de capítulos. Nessas linhas destaca-se a experiência de redescobrimento de si mesmo e do outro, isto é, da estagiária e do escritor; o quanto esta relação silenciosa e feita de intensa observação os tornava distantes e próximos ao mesmo tempo. Era um encontro, um encontro da obra com seu criador. No término de tal prática, Gwyn entrega o retrato a Rebecca, que fica encantada, porém ela observa algo sobre o que vivenciou no estúdio:
“É tudo fácil. Menos o final. É isso o que eu queria lhe dizer. Se quiser minha opinião, o final é horrendo. Até me perguntei por quê, e agora acho que sei… Todos aqueles dias criam uma expectativa de que algo físico deva acontecer, no final. Algo que recompense. Uma distância preenchida eu diria. O senhor a preenche escrevendo, mas e eu? e nós? todos os que se farão retratar? Vai devolvê-los para casa como me devolveu, na mesma distância do primeiro dia?” (páginas 143, 144)
Jasper escuta atentamente as palavras de Rebecca e não manifesta nada a respeito, apenas a convida para ser sua secretária. Rebecca começa a selecionar pessoas para serem retratadas. O primeiro cliente é o senhor Trawley, homem entristecido, de 63 anos. As condições são as mesmas: o homem fica nu durante 4 horas em 30 dias. No último dia, senhor Trawley, ao contrário de Rebecca, abraça o retratista e diz:
“Não consigo deixar de pensar que, se tudo isso tivesse acontecido muitos anos atrás, eu hoje seria um homem diferente e, sob muitos aspectos, melhor.” (página 147)
Já com outra cliente, a senhora Harper, Jasper no último encontro a vestiu:
“Eu queria que o senhor me ajudasse a me vestir, disse ela. Com doçura, acrescentou. Jasper Gwyn aquiesceu. É a primeira vez que alguém faz isso para mim, diz ela.” (página 153)
Jasper faz um total de nove retratos, sendo que um deles é de seu ex-agente e melhor amigo Tom, que está hospitalizado e muito doente. Nessa passagem belíssima do livro, o retratista escreve nove folhas sobre Tom. E, pela primeira e única vez, Jasper lê um retrato feito, algo que não fez com nenhum retratado. A aproximação entre o escritor e sua obra ocorre desta maneira:
“Tom tirou de sob as cobertas um braço e apoiou a mão na cabeça do amigo. Na nuca. Em seguida puxou-o para si – pousou a cabeça do amigo em seu ombro e a manteve ali. Mal movia os dedos, como para se assegurar de alguma coisa… Pressionou um pouco os dedos sobre a nuca do amigo. Quando Jasper Gwyn foi embora, Tom havia adormecido. Sua mão se apoiava sobra as folhas do retrato, e a Jasper Gwyn pareceu a mão de um menino.” (página 164)
O livro mostra, detalhadamente, a história de cada indivíduo retratado e a experiência reveladora que tal vivência causa a eles e ao autor. O romance Mr. Gwyn é uma narrativa metalinguística, pois através dos retratos vão se construindo histórias. De modo delicado e encantador, Baricco mostra a nós, leitores, o quanto somos compostos por histórias extraordinárias, o quanto “essa busca pelo poder transformador da palavra” pode nos tornar mais próximos, mais humanizados. O quanto o poder transformador das palavras nos é essencial. Enfim, um livro belíssimo.
Baricco, Alessandro. Tradução: Joana Angélica. Primeira edição, Rio de Janeiro. Editora Objetiva, 2014.