
Coletânea da argentina Mariana Enriquez usa o horror como forma de lidar com problemas internos, arriscando entre a mescla da representação do horror “real” com o imaginado e com o uso de ideias que podem soar clichês aos mais exigentes com o que se associa ao gênero
O horror do fogo faz pouco caso da gente. Ele consome devaneios que temos do seu calor, páginas que gostaríamos de guardar, lembranças queridas, esperanças. As coisas que perdemos no fogo, livro de contos da argentina Mariana Enriquez publicado pela Intrínseca, vai na mesma onda: faz questão de queimar a tranquilidade de quem está lendo.
Suas histórias têm um ritmo ágil, sem construções grandiosas de linguagem ou exageros – às vezes o tom parece seco. O foco está nos enredos e nas sensações, como se o esforço contínuo da sobrevivência pudesse ser descartado sem alguma vez ter sido importante. Ou queimado como uma coisa descartável qualquer, aquecendo as mãos de alguém até esse alguém alimentar a fogueira.
Isso está logo na abertura da coletânea. Ambientado no bairro Constitución, tido como abandonado e desolado, a trama de O menino sujo pode ser confundida com um pedaço do Brasil, devido à semelhança de algumas situações. Entre elas, o esforço para se construir e manter uma identidade ao convívio com o que muitos olham com nojo e desprezo. Quando se progride nesse conto, ele toma um rumo que faz questão de destruir parte de si mesmo, como se te levasse a uma queima de arquivo.
Já Sob a água negra traz outro desconforto. Ele tem uma ideia parcialmente semelhante à do conto de abertura, mas sua direção é outra. O cenário também tem destaque, como se fosse uma entidade com mais consciência dos personagens do que eles mesmos. Aliás, eles nem precisam disso. A protagonista ainda tenta, mas um padreco da trama vai no embalo de uma batucada; e uma investigação relacionada a um rio tóxico encontra uma evidência pela qual ninguém põe a mão no fogo.
Além do terror “real” – a outra face do fogo
Os demais contos têm outros focos, em uma boa decisão da autora. Teria sido tentador ambientar todos no que entendemos por “real”, mesclando o horror dessa representação aquele buscado pelos enredos. Mas isso teria diminuído o impacto do conjunto, gastando recursos na mesma velocidade com que são apresentados. A unidade está no que se perde, independente de suas ambientações e verossimilhanças.
Há contos com ideias velhas e até previsíveis, facilmente associadas a filmes e contos de terror. A insistência em saber o que há em um ponto abandonado, como se fosse o lugar sinistro que todo bairro tem. O horror como divertimento, narrado por um personagem à vontade para vender demônios coletivos, enquanto não percebe que perdeu alguma coisa nesse turismo pela farsa da escuridão. E também um casal unido mais pela inércia de uma convivência encardida do que por um sentimento ardente, e o que sobra dele é posto em cheque à medida em que o enredo avança.
Tais narrativas podem soar clichês para os mais exigentes com a produção de horror, uma das palavras facilmente associadas à produção de Mariana Enriquez nessa coletânea. Embora verdadeira, essa explicação não resume a obra. A sensação do livro usa o gênero como forma de avaliar quais coisas perdemos no fogo, começando pela capacidade de ainda nos assustarmos com nossos fantasmas.