O irmão alemão de Chico Buarque

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O novo livro de Chico Buarque,  O irmão alemão,  recupera parte da história de seu pai, Sérgio Buarque de Holanda. Trata-se de um romance memorialístico que perpassa a Alemanha nazista, o golpe militar no Brasil, os festivais musicais da TV, entre outros momentos.

Chico Buarque

Chico Buarque em seu último livro, O Irmão Alemão, recupera parte da história de seu pai, Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), compondo um romance memorialístico ficcional. Para resgatar essa passagem de vida, e melhor fundamentar a narrativa, o escritor contou com a ajuda do museólogo alemão Dieter Lange e o o historiador brasileiro João Klug. Os pesquisadores buscaram informações sobre Sergio Ernst, filho de Anne Ernst e de Sergio Buarque de Holanda. O casal se conheceu em Berlim e viveu um breve romance, entre as quadras de 1929 a 1930.

Na ficção, tudo começa quando o narrador em primeira pessoa, Francisco de Hollander, um contumaz “saqueador” da biblioteca paterna, encontra dentro de um livro uma missiva endereçada ao seu pai. Ao ler a carta, o jovem descobre que no período que “Sergio de Hollander” viveu em Berlim (1929-1930), namorou com Anne Ernst e com ela teve um filho, criança que nunca conheceu, pois quando nascera, o homem já havia retornado para o Brasil. Sobre o momento que Francisco encontra-se com esse passado do pai, lê-se:

“Desta vez eu vinha lendo o Ramo de Ouro, numa edição inglesa de 1922, e ao virar a página 35 dei com uma carta endereçada a Sergio de Hollander, rua Maria Angélica, 39, Rio de Janeiro, Sudamerika, tendo como remetente Anne Ernst, Fasanenstrasse 22, Berlin. Dentro do envelope, um bilhete batido à máquina em papel almaço amarelado e puído.” (p. 8)

E continua:

“Na verdade, acho que já ouvi falar de algo mais sério, acho até que há tempos ouvi em casa mencionarem um filho seu na Alemanha. Não foi discussão de pai e mãe, que uma criança não esquece, foi como um sussurro atrás da parede, uma rápida troca de palavras que eu mal poderia ter escutado, ou posso ter escutado mal. E esqueci como hei de esquecer essa carta dentro do livro, que preciso guardar na fileira do fundo da estante dupla do corredor. Preciso guardá-lo exatamente em seu lugar, pois se meu pai não admite que eu mexa em seus livros, que dirá neste.” (p. 9-10)

Só que Francisco de Hollander não esquece dessa carta; pelo contrário, a existência de um irmão alemão e a vontade de encontrá-lo torna-se uma ideia fixa para o jovem. Não podendo tocar no assunto com sua mãe, tendo receio de constrangê-la; nem com seu pai, com quem parece não ter muita intimidade e muito menos com o irmão, com quem mantém uma relação de rivalidade, Francisco confidencia sua descoberta ao amigo Thelonious, que procura ajudá-lo.

A partir da relação com Thelonious, a narrativa vai ganhando seu desenho espacial histórico. Através dos passos dos amigos, o leitor entra em contato com a São Paulo da época (década de 60). Na narrativa, vai se construindo a cidade, suas ruas, seus carros, seus bares e a relação dos jovens com o meio. É numa dessas descrições que Chico recria uma passagem veridica de sua adolescência: quando ele e o vizinho Olivier roubam um Peugeot , placa 3-2670, para dar voltinhas por São Paulo e o abandonam na rua Capivari. Nos contornos ficcionais, os amigos Francisco e Thelonious “puxam” um Skoda e, posteriormente, largam nos trilhos de um bonde.

O amor e a bibliomania de Sérgio Buarque de Holanda também está presente em O Irmão Alemão. Chico Buarque faz questão de salientar a relação de seu pai com os livros e do quanto essa paixão pela leitura o influenciou. Não raro será o capítulo que o narrador falará de um autor e sua obra, citando títulos e edições. Sobre a biblioteca paterna, escreve:

“A biblioteca do meu pai contava então uns quinze mil livros. No fim, superou os vinte mil, era a maior biblioteca particular de São Paulo, depois da de um bibliófilo rival que, dizia meu pai, não havia lido nem um terço de seu depósito. Calculando que ele tenha acumulado livros a partir dos dezoito anos, posso tirar que meu pai não leu menos que um por dia.” (p. 19)

Maria Amélia, sua mãe, no romance é Assunta: uma dedicada esposa e mãe de dois filhos, Francisco e Domingos. Além de dona de casa, é uma espécie de secretária do marido que, em algumas descrições, surge com ares pitorescos.

Em seus périplos imaginários ou reais, porém, o jovem Francisco está atrás de uma outra mãe, a senhora germânica, mãe de seu meio-irmão Sergio Ernst. O narrador, então, conhece pessoas que lhe dão pistas, indicam nomes, caminhos… De tanto esmiuçar a história, o jovem descobre que Anne reside no Brasil, em São Paulo, e é casada com um músico que dá aulas particulares. Francisco, para se aproximar do lar dos estrangeiros, mente que é namorado de uma ex-aluna de Henri Beauregard, atual marido da imigrante alemã. Assim se inicia o seu contato com essa família, na qual ele conhece o filho Christian, professor de francês. Esse não é Sergio. A pergunta que o narrador se faz é: por onde anda o irmão alemão? Anne, no passado, o dera para a adoção?

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“O irmão Alemão” (Companhia das Letras, 2014)

Nessa busca desenfreada pelo irmão “forasteiro”, fatos históricos imprescindíveis são mencionados aqui e ali. A narrativa perpassa a Alemanha nazista; o golpe militar no Brasil, representado pelo personagem Domingos, vítima do regime, tendo como desfecho seu desaparecimento; os festivais musicais da TV entre outros. Numa passagem metalinguística, o narrador se questiona:

“[…] serei capaz de escrever um romance inspirado na Alemanha dos anos 30, tão presente nas minhas leituras e fantasias. Posso romancear por exemplo a história de Anne Ernst, cuja foto com meu irmão no colo guardo no bolso da camisa e várias vezes por dia tenho a compulsão de olhar…” (página 148)

Embora o livro de Chico tenha recebido alguns comentários negativos de críticos relevantes, o escritor conseguiu realizar aquilo que seu narrador duvidava ser capaz: Chico criou, sim, uma boa história. Quem ler o romance, mergulhará na fértil imaginação do narrador, envolver-se-á em sua busca e terá no mínimo, como recompensa, uma aprazível viagem por esse passado real- ficcional.

 

Referência:

Buarque, Chico. O Irmão Alemão. Primeira edição, Companhia das Letras. São Paulo, 2014.

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