
O Jardim das Hespérides, coletânea de contos de Daniel Gruber, apresenta transições cuidadosas de perspectiva e o uso cauteloso de recursos, no cultivo de uma voz autoral que não quer depender demais de suas referências
O Jardim das Hespérides é uma coletânea de contos que não quer depender totalmente do seu solo. A colheita que o autor Daniel Gruber proporciona, publicada pela editora Grifo após financiamento coletivo no Catarse, é arriscada, pois ao criar suas plantas literárias o contista misturou a busca por uma voz própria, a relação com a referência principal e o cuidado com a forma.
A capa e o nome entregam a principal referência, a mitologia grega. Os deuses que brigam, sangram e fazem sexo que nem gente, suas picuinhas divinas, os poderes que os distinguem dos reles mortais, sua galeria de personagens secundários e suas tramas estão aqui no livro. Porém, não em um sentido de reverência nem de profanação. É como um ponto de partida, um empréstimo.
O conto Prometeu escancara isso. Focado na Central de Serviços Amorosos do Grupo Prometeu, a narrativa varia de um cliente às raias do fogo com o SAC da empresa, que de novo errou no pedido dele. O cliente é atendido com a chatice digna de um telemarketing, em que algumas funções do (des)serviço moderno tomam nomes mitológicos, mas a chateação e o resultado são bem humanos. Isso até um trecho desse conto em que há uma leve mudança de perspectiva, e a gente percebe que esse consumidor não é o centro. Ele é apenas um artifício, uma planta falsamente cultivada nesse jardim.
Já Crônica do Tédio faz questão de honrar esse sentimento em seu começo. A pobre criatura que a narra se encheu do mundo e de si mesma, às voltas com restos de vícios vencidos e implosões dramáticas. Mas no avanço do conto isso perde espaço, porque ela se envolve em coisas que fazem o tédio inicial parecer uma qualidade. Seria previsível pensar que ela se envolve com drogas, orgias e afins para ficar menos de saco cheio, mas o final desse conto faz questão de jogar até isso fora.

A tríade que compõe as hespérides
Não é exagero afirmar que O Jardim das Hespérides é composto de três livros, graças à divisão dos contos. Ela tem um efeito duplo: demarcar os limites de partes do Jardim, e também o de bagunçar involuntariamente a publicação. A divisão em três partes, nomeadas a partir da referência principal adotada, tem o pró de unir contos que carregam semelhanças temáticas, mesmo com o custo de entregar um pouco do conteúdo. Mas o outro efeito é dar a impressão de serem três livros em um, sem um diálogo tão preciso entre si.
Quase todos os contos dessas Hespérides possuem uma transição. Perspectivas, conversas e linguagem os conduzem, às vezes as ações (e falta delas) também. As sutis mudanças de diagramação colaboram com essa sensação positiva da leitura. Elas são nítidas mas não são berrantes, como se o autor as tivesse inserido em trechos específicos em vez de ostentar mero experimentalismo.
Porém, a tríade pode dar a impressão de contos unidos em volta de um objetivo, mas escritos em épocas distintas. É como se justo a transição, tão evidente e usada com cuidado em cada parte das narrativas, ficasse em segundo plano ao inseri-las em um conjunto. Embora dê uma sensação de estranhamento para leitores mais exigentes, não chega a ser demérito.
Não é exagero dizer que isso faz parte do cultivo de uma voz autoral. No caso de Daniel Gruber e seu O Jardim das Hespérides, ele se dá pelo foco em uma coleção de referências e a briga para não depender demais dela. Conduzida por recursos narrativos usados com cautela, talvez por receio de abusar de mudanças de pontos de vista, a leitura é um convite à colheita. Tem mais de uma hespéride para cada leitor.