O jeito que a mídia quer que você pense: “Vernon God Little”, de DBC Pierre

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Vernon God Little é uma sátira da cultura americana, da mídia e da estupidez moderna

detail.be9eb488Em 1001 livros para ler antes de morrer, o autor do verbete sobre Vernon God Little escreveu sobre o romance que ele “é uma comédia de humor negro escrita com sotaque texano tão intenso que você se perceberá revirando as palavras na boca, a fim de entender o sentido delas.” Nada mais justo. O romance de estreia de DBC Pierre tem uma linguagem assustadora, complicada e fascinante. O narrador, Vernon Gregory Little, um sobrevivente de um massacre escolar perpetrado pelo seu melhor amigo, Jesus, narra essa insana história com frases desconcertantes, tão mirabolantes quanto deliciosas de serem lidas.

Mas não é só disso que sobrevive esse grande livro.

Vernon God Little é um livro de humor negro que ataca todos os grandes problemas da cultura americana de forma mordaz: drogas, obesidade, obsessão, winners and losers, alienação juvenil, gula, famílias problemáticas, consumismo, sistema judiciário, a mídia.

Vamos observar melhor esse ponto, a mídia.

O grande plot da história se dá quando o jovem Vernon, sobrevivente de um massacre, passa a ser visto como um provável ajudante dele. O movimento é simples e conduzido por certos interesses. O real assassino, Jesus, tirou a vida após o acontecido. Muitos queriam ter em quem pôr a culpa, ter um ser vivo no qual pudessem depositar suas pragas e xingamentos. Vernon é o nosso homem. Todo o processo, porém, não começa na população, nem mesmo entre os homens da justiça (polícia ou advogados), mas sim em Eulalio Ledesma, um suposto repórter da CNN que se aproxima da família de Vernon, tendo um breve caso com sua mãe, e acaba por traí-lo, corroborando com a ideia de que Vernon é sim um assassino.

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Record, 2006

Todo o circo está montado para as mais absurdas das ações. Aos quinze anos, o jovem é acusado sem provas em um julgamento sem fundamento. Tudo, no entanto, é altamente midiatizado. O julgamento em si, um dos grandes do livro, mais parece uma grande farsa burlesca que um momento de resolução de problema. Tudo é conduzido por interesses, é claro, a maioria deles objetivando o estardalhaço e o lucro próximo, a coisificação de um fato complexo – mais lucro.

É fácil ver como a mídia manipula cada gesto, cada fato, levando o público aonde quer. Um bom exemplo disso é quando Eulalio Ledesma força uma confissão ao usar da amada de Vernon (que tem interesses em se tornar uma celebridade). O público vai ao delírio, tem alguém a quem culpar, julgar e condenar, tudo partindo do produto vendido pela mídia sem escrúpulos – que dá o produto demandado pela população e obtém seu lucro.

Vernon God Little, publicado em 2003, mostra ironicamente a maneira como somos conduzidos a pensar como pensamos. Não somos tão autônomos quanto pensamos e a mídia (à direita ou à esquerda) é uma grande construtora do que supomos ser nossa originalidade. Para os comentadores de facebook & CIA, dados a arroubos de moralidade guiados por notícias e comentaristas, este é um bom romance para olhar para si mesmo e pensar: “por que, afinal, eu estou pensando nisso?” Com humor negro, DBC Pierre nos conduz à estupidez cotidiana de quem compra e aceita uma notícia, julgando e salvando pessoas sem ao menos pensar sobre a questão. Ainda vemos como tudo no fim, como sempre, não objetiva a verdade ou qualquer bobagem semelhante que jornalistas gostam de pronunciar, e sim o simples e puro lucro. A própria cidade em que se passa a maior parte do romance, Martírio (a capital do molho de churrasco), começa a enriquecer com o massacre e a perseguição a Vernon, não dando muita bola para o fato de acusar sem provas um garoto de 15 anos.

Em suma: Vernon God Little é um lida com o que há de mais prosaico e perigoso em relação à mídia e às opiniões que ela forma. Uma pena que quando lançado no Brasil pela Editora Record, após DBC Pierre ter ganho o Man Booker Prize, tenha sido ignorado esse grande romance de estreia.

(Talvez, não por acaso, a mídia achou o livro ofensivo).

Para quem se interessar, há no site Estante Virtual várias cópias da única tiragem em português do romance ao preço de R$ 5,00 (isso mesmo, cinco reais). Caso se interesse pelo jabá não-patrocinado, clique aqui.

Caso ainda tenha se interessado pelo livro e pelo autor, vale a pena ver sua entrevista no Roda Viva que segue.

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