Quando falamos França e Literatura, alguns nomes são sempre lembrados (Flaubert, Rimbaud, Zola, Duras, Victor Hugo, Sartre, Camus, Maupassant, Balzac, Sthendal, Proust). No entanto, há uma gama infinita de autores e uma variedade gigantesca de texto produzida na França desde muito
Centro durante muitos séculos da cultura ocidental, a Literatura desse país abarca gêneros um tanto quanto usuais para os leitores lusófonos (Ensaios de Montaigne ou Pensamentos de Pascal estão mais para a filosofia especulativa do que para a Literatura).
Para além, o país ainda hoje consegue, por motivos diversos, atrair e repatriar autores das mais variadas origens (Gao Xingjian, Nobel em 2000, é chinês, mas escreve em francês; Jean-Marie Le Clézio, Nobel em 2008, é francês, porém divide origens com a pequena ilha de Maurício; Albert Camus, Nobel em 1957, nascido na Argélia; Samuel Beckett, Nobel em 1969, nasceu na Irlanda, contudo escreveu boa parte de sua obra em francês; Eugène Ionesco, ícone do Teatro do Absurdo, é romeno), sem mencionar os autores das antigas colônias que ainda são considerados franceses, mesmo que a maioria negue esse rótulo colonialista.
Para mostrar o quanto a França é capaz de produzir autores interessantes, separamos alguns deles e obras capazes de mexer com o leitor – mesmo que a maioria deles seja desconhecida para nós até hoje.
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François Rabelais – Gargantua e Pantagruel
É impossível que um romance norteado pela ideia de “comer, beber e ficar alegre” não seja cativante. A história é simples: seguimos a vida de dois gigantes em meio à França da época e seu desenvolvimento. Tudo é gigante nessa obra – além de engraçado. Muito antes de Cervantes, Rabelais fazia troça dos estilos e da formalidade da época, além de zombar da sociedade que o cercava de forma magnífica e saborosa. Nesse romance de dimensões colossais, vemos dois personagens divertidíssimos em aventuras sem fim, prontos para discutir o que seja da forma mais divertida possível.
Jean Racine – Fedra
Se a Inglaterra tem Shakespeare, a França tem Racine. Autor classicista como o camarada do outro lado da mancha, ele conseguiu criar um número infinito de peças sérias galgadas no modelo clássico de Ésquilo, Eurípides e Sófocles ao mesmo tempo em que recriava a mitologia e o mundo dramático. Encontramos sua melhor síntese em Fedra, uma tragédia com tudo que se tem direito do erotismo ao escatológico. Fedra é mulher de Teseu – sim, aquele mesmo lá de Homero – e se apaixona pelo filho deste, Hipólito, seu enteado. O resto é tragédia, pois, como é de se esperar numa tragédia, algo não é o que parece e nesse jogo de luz e sombra temos um fim digno de um clássico.
Pierre Choderlos de Laclos – As Ligações Perigosas
Confesso que fiquei tentado em colocar Sade no lugar dele, mas a pornografia de ambos é semelhante. Nesse romance epistolar escrito em meio ao tédio do exército, vemos a frivolidade da aristocracia francesa revelada a partir de uma aposta. Valmont e Marteuil são aristocratas entediados que decidem conquistar e brincar com os recém-chegados à corte por pura diversão. A dupla destrói com a vida de muitos pelo simples prazer de se divertir entre o nada da alvorada e a hora de dormir. Não é a toa que esse romance foi adaptado inúmeras vezes para cinema, dada a sua aterradora atualidade.
Charles Baudelaire – As Flores do Mal
Se a França era o país dos grandes escritores, também era o dos grandes escândalos com estes – e não seria diferente nesse caso. A mais famosa das obras de Baudelaire versa sobre tudo o que a Lírica Universal já vinha falando, apenas adiciona algo a mais, aquele toque que só os bons sabem adicionar. Tudo bem, há um pouco de pornografia aqui, um pouco de sadismo ali, até apologia ao homossexualismo em homenagem à poetisa Safo encontramos. O fato, sem sombra de dúvidas, é que há um legado inestimável para todos os poetas que vieram depois dele. Seus sonetos, que podem parecer tradicionais num primeiro momento, chocaram o mundo – literário ou social. Apesar do processo e da censura, o que resta é uma grande e prazerosa obra.
Stephane Mallarmé – Um golpe de dado jamais abolirá com o acaso
Parem tudo, pois, se você leu Um golpe de dados jamais abolirá com o acaso e não foi tirado do seu lugar de leitor habitual, há algo de errado. Um dos primeiros tipográficos compostos – muito antes do Concretismo no Brasil descobrir a roda –, a obra em si choca até hoje pela distribuição dos versos na página, pelo tamanho variado das letras, conforme a ênfase que o autor quis dar a elas. A liberdade nossa, como leitor, é imensa, afinal, podemos dar a ênfase que desejarmos aos versos, querendo ou não seguir as indicações de Mallarmé. Para quem gosta de inovação, são quinze páginas que irão renovar sua visão sobre a poesia.
Louis-Ferdinand Céline – Viagem ao Fim da Noite
Para mim, não há começo de romance mais belo e cruel de que a fala de Barmadu, personagem principal, narrador e espécie de alter-ego do autor, sobre um corpo do exército que passa pela rua e a euforia das pessoas com a guerra. Em seguida, somos transportados para o front alemão da Primeira Guerra, onde os comandantes perdem a cabeça e deixam seu sangue saltar como groselha, pessoas perdem pernas e braços, nada mais faz sentido. Tudo narrado pelo mesmo Barmadu. Mas não podemos resumir a obra a esse ponto: vemos os EUA e suas fábricas, a África colonial, a pobreza, a mesquinhez humana, o homem errante. De Sartre a Bukowski (esse último dizia que não havia autor como Céline, nem romance como esse), o valor de seu primeiro romance na Literatura é gigantesco. Pena que sua obra fora deixada em segundo plano após seu apoio – inclusive com livros-panfletos escritos por ele – ao Nazismo.
Raymond Queneau – Exercício de Estilo
Era uma vez um grupo de escritores malucos. Eles queriam ver até onde a Literatura poderia chegar usando algumas restrições e coordenadas matemáticas. Eis que nascia OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle ou Ateliê de Literatura Potencial). Dentre eles estava Queneau. Nessa sua obra, a mais famosa dentre todas, o que vemos é um simples exercício de estilo como aponta o título. Queneau pegou uma pega cena do cotidiano e a escreveu de 99 formas possíveis – como sonho, como comédia, como um bilhete oficial, como ode, como metáfora etc. Obra para quem gosta de ver como a forma muda o conteúdo, é um divertidíssimo exercício de escrita.
George Perec – O Desaparecimento
Outro membro do OuLiPo, Perec escreveu o romance mais interessante do ponto de vista das restrições. Imaginem vocês escreverem qualquer coisa sem a letra A, a mais comum no português. No caso dele, a letra que sumiu foi o E, a mais comum no francês. O desaparecimento da letra não impede de forma alguma o que vem a seguir. No livro, vemos uma narrativa como outra qualquer, além de muito pastiche dos grandes poetas franceses. Intraduzível para alguns, é uma ótima forma de ver que nada segura Literatura – nem mesmo as imposições mais malucas.