O leitor da ficção quente

Cada escritor atraí os malucos que mais lhe agradam

James Joyce olhando para seus leitores (a)normais

Leitores não são pessoas muito normais, principalmente quando se apegam demais à obra de um autor. Ler as ficções e ensaios do autor é o começo, depois vem as biografias, os livros e autores mestres dele, daí para falar do escritor como se fosse um amigo de infância é um passo. Você nem precisa dar corda para um amigo seu falar de como gosta do escritor ‘fulano’, é capaz dele decorar a fala de um personagem e usá-la direto. Até aí tudo bem, há manias e paranoias aceitáveis, acaba fazendo parte da pessoa – do amigo, não o escritor que ele tanto admira. O problema é quando você ouve ou lê uma e percebe que algumas pessoas vão longe demais.

Ainda não perdi a cabeça nessas explorações, ou se perdi ninguém me contou, mas a de um amigo meu já era. Era uma terça à noite, eu tinha voltado para casa após uma aula e comecei a olhar no meu computador uma tarefa que o professor deixou, tinha deixado o Facebook logado e aconteceu de um colaborador daqui querer tirar uma dúvida, tinha de olhar um material para postar naquela semana, e fiquei online um tempo. Nisso um amigo, doente pela ficção de James Joyce, veio trocar uma ideia comigo.

Vou chamá-lo de Dublinense para não o expor demais, e também por ser referência à primeira obra do Joyce, Dublinenses. Ele me disse que tinha desmontado o santuário, que é como ele chama o espaço dos livros do Joyce. O Dublinense aguenta (não me pergunte como) todas as piadas imbecis que faço da paixão dele pela obra do Joyce, porque vai muito além de encarar os colossais Ulysses e Finnegans Wake. Quando ele me disse que desmontou o ‘santuário’ eu o chamei de iconoclasta e disse que James Joyce puxaria o pé dele. O Dublinense disse que isso seria uma honra.

Eu achei aquilo muito, muito estranho. Eu não gostaria se alguém fizesse uma piada dessas comigo e dissesse que o Cthulhu, algum filhote do Lovecraft ou do Clive Barker viria puxar meu pé de noite. Não seria honroso, seria de bizarro pra baixo. Você gostaria se um monstro viesse puxar o seu pé à noite quando você só quer dormir? Eu não. Mas beleza. Daí o Dublinense me disse que o Joyce deixa ele quente igual a Clarice Lispector. Quando essa mensagem apareceu para mim, eu vi e pensei ‘eu não li isso’.

Pior que eu li. O que foi lido não pode ser deslido, a internet é clara. E eu estava acordado o suficiente para saber o que li naquele momento. Era estranho demais até para os padrões do Dublinense. Ok, ele é leitor de James Joyce e essa categoria consegue ser mais anormal do que leitores anormais, mas não tanto. Tão bizarro quanto isso é que o próprio James Joyce aprovaria essa relação com a obra dele, talvez até pedisse ao meu amigo uma aula de como sentir a textura de um livro, de um autor, qualquer coisa a ver com texto além do papel. E daria certo, tem um capítulo do Ulysses em que o Leopold Bloom meio que busca sentir uma cor ou um pedaço da roupa. Ainda que muitos possam olhar para isso com uma cara incrédula e balançar a cabeça como quem diz ‘vamos sair daqui’, combina. Cada escritor atraí os malucos que mais lhe agradam.

Walter Bachhttp://homoliteratus.com/author/walter/
Colaborador desde 2014 do Homo Literatus, incluindo tradução, revisão e redação; coeditor de junho de 2015 a agosto de 2018 Colaborei no portal A Escotilha, de Curitiba/PR, de 2015 a 2016.
Walter Bachhttp://homoliteratus.com/author/walter/
Colaborador desde 2014 do Homo Literatus, incluindo tradução, revisão e redação; coeditor de junho de 2015 a agosto de 2018 Colaborei no portal A Escotilha, de Curitiba/PR, de 2015 a 2016.
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