O leitor estúpido: Mary Bennet em Orgulho e Preconceito

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Elisabeth Bennet

– Diz preferir ler a jogar?- disse Mr. Hust – Que coisa estranha. – Miss Elizabeth Bennet – disse Miss Bingley – tem desprezo pelas cartas. Ela é uma grande leitora, e, para além disso, nada lhe dá prazer. – Não mereço nem tal louvor nem tal censura – exclamou Elizabeth -; não sou uma grande leitora, e são muitas coisas que me dão prazer.

O leitor estúpido é como qualquer outra pessoa estúpida. A diferença é que ele pensa que livros necessariamente o salvam de tal condição.

Em Orgulho e Preconceito, Jane Austen retrata dois tipos de leitores. Primeiro temos a heroína da história, Elizabeth Bennet. Sagaz, espirituosa e irônica, Lizzie (como irei chamá-la daqui pra frente) gosta muito de ler. Mas ela, como pessoa inteligente que é, reconhece que não há sentido em ficar imersa nos livros todo o tempo, e por isso também vai a bailes, fofoca com a irmã e a melhor amiga, entre outros passatempos inofensivos, que dificilmente diminuirão seu intelecto.

Lizzie poderia ler mais, citar autores importantes a cada conversa cotidiana e deixar de lado todas as “frivolidades”. No entanto, ela prefere viver sua vida e ter sua própria carga de sabedoria, que é bagagem extremamente necessária para aventurarmos em qualquer leitura e absorver seu conteúdo. É uma leitora consciente e esperta, capaz de interpretar textos através de seu filtro pessoal. Ela é tão inteligente que até gosta de ler livros! Nunca o contrário. Já o segundo caso…

– Qual a tua opinião, Mary? Tu, que és jovem sensata e profunda, que lês bons livros e deles extrais ensinamentos. Mary quis dizer algo de relevante, mas não sabia como.

Mary Bennet é tudo o que Lizzie não é. Mary lê vorazmente. Desdenha dos interesses das irmãs, das futilidades da vida e de qualquer conversa sobre banalidades.  Ela acredita que livros são uma fonte inesgotável de conhecimento.

– Longe de mim menosprezar tais prazeres, minha querida irmã; são os que sem dúvida se enquadram mais naturalmente nos temperamentos femininos. Mas confesso que não me seduzem. Prefiro infinitamente mais um bom livro.

Na personagem de Mary, Jane Austen faz uma crítica deliciosa e bem humorada a respeito da leitura e da receptividade da mesma por parte do leitor. Ela demonstra que não há qualquer benefício no apreço demasiadamente excessivo que Mary tem pelo hábito da leitura. Quando não está lendo e fazendo reflexões “profundas” a respeito dos livros, Mary também se dedica a outras atividades “superiores”, como tocar piano.

A atuação de Elizabeth foi agradável, embora de modo algum excelente. Depois de uma canção ou duas, e antes que pudesse responder à insistência das várias pessoas para ela cantar de novo, o lugar ao piano foi avidamente ocupado pela sua irmã Mary, que, em consequência da sua fealdade, se aplicara na árdua aquisição de conhecimentos e dotes, vivendo na ânsia constante de os exibir. Mary não tinha nem talento nem gosto; e, embora a vaidade lhe tivesse dado aplicação, emprestara-lhe também um tal ar de superioridade e afetação nos modos que por si só prejudicariam um grau de perfeição mais elevado que o que ela atingira; Elizabeth, que não tocava tanto como a irmã, prendera muito mais a atenção.

Seja tocando piano ou dando lições moralizantes, Mary falha em perceber que todos os seus esforços não a tornaram tão sapiente quanto se imagina. A leitura exagerada e o desprezo por atividades menos eruditas não a dotaram do senso crítico que só podemos adquirir através da convivência com outros seres humanos. Aliás, livros são, geralmente, sobre eles (avisando aqui, para o caso de um desses leitores fervorosos ainda não terem atentado para o fato). Isolada em sua ilha de erudição, Mary, ao contrário, aumenta cada vez mais sua estagnação intelectual. O que ela compreende de suas leituras, quando compreende, não acrescenta nada para si mesma. Está tão convencida de sua superioridade que até mesmo as reflexões originais que faz só servem para serem aplicadas aos outros. Nunca passou pela sua mente aguçada que, assim como todos os meros e fúteis mortais aos quais dá lições, ela também carece, muitas das vezes, de uma dose nada comedida de autocrítica.

– O orgulho – observou Mary, que se vangloriava da solidez das suas reflexões – é um defeito muito vulgar, creio eu. Depois de tudo o que li, estou deveras convencida da sua vulgaridade, que a natureza humana lhe é particularmente propensa e que são raros aqueles entre nós que não nutrem um sentimento de condescendência própria baseado numa ou outra qualidade, real ou imaginária. Vaidade e orgulho são coisas diferentes, embora as palavras sejam frequentemente usadas como sinônimos. Pode-se sentir orgulho sem ser vaidoso. O orgulho diz respeito mais à opinião que temos de nós próprios, enquanto a vaidade ao que pretendemos que os outros pensem de nós.

Ah, como seria glorioso se Mary Bennet falasse umas abobrinhas de vez em quando! Jane Austen, nos tempos de hoje, recomendaria mais balada e menos biblioteca pra essa moça.

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