Bernardo Carvalho na Flip 2016: “Não me interessa se o leitor lê ou não lê; eu quero que se foda. O que eu quero é fazer minha literatura”. Será?
02 de Julho, final da 14ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), um enviado especial da Folha de S.Paulo recorta da fala do escritor e jornalista Bernardo Carvalho trecho dos mais polêmicos; em mesa com Benjamin Moser, teria declarado: “Não me interessa se o leitor lê ou não lê; eu quero que se foda. O que eu quero é fazer minha literatura”. A frase logo se espalha pelas redes, conquistando um número significativo de adversários e outro menor de adeptos. O mais notável é que com isso ela reacende uma discussão central não somente para os estudos literários, mas também para o campo da cultura. O autor pode desconsiderar o consumidor? É este último a outra ponta que o sustenta? A demanda de mercado deve ser atendida? Assim, além da produção e recepção das obras, a discussão passa pelo entendimento inevitável das formas de atuação da indústria cultural. Entretanto, é preciso deixar mais clara e detalhada a posição de Bernardo Carvalho, antes de esboçar respostas a essas questões ou talvez melhor formulá-las.
Cinco meses antes do ocorrido, em coluna no blog do Instituto Moreira Salles, o autor de livros como Aberração (1993), Nove noites (2002) e Reprodução (2013) já havia exposto sua simpatia por autores de obras que oferecem consideráveis obstáculos à leitura – desagradam, falam o que em geral se evita ouvir –, como as de Thomas Bernhard e as de Samuel Beckett. Além disso, destacava a atitude corajosa do editor Jerôme Lindon por, não obstante as dificuldades individuais financeiras e as coletivas do pós-guerra, fazer o não aconselhável nessas situações: publicar aquilo que ninguém queria ler, sobretudo o próprio Beckett e os primeiros nouveaux romans.
Um pouco mais do que o simples desinteresse pelo leitor enunciado na Flip, Carvalho se posicionava “contra o leitor”. Dado que a literatura foi sequestrada pelo gosto, pelas convenções e pela mímese de uma realidade já apreciada e conhecida, ela deveria encarnar, nas suas palavras, uma espécie de projeto civilizatório. Nele, a escrita se orientaria no sentido de alargar a consciência e a compreensão do mundo, recusando-se a subscrevê-lo tal qual ele nos é apresentado. Nesse sentido, escrever contra o leitor seria, na verdade, escrever por um novo leitor.
Ao final, num curioso presságio do que foi a reação as suas recentes declarações, observava: “Dizer hoje que se escreve ‘contra o leitor’ é imediatamente associado à suposta arrogância e à presunção de quem diz. É uma heresia e um paradoxo, uma contradição em termos, além de ser considerado uma ofensa. Porque o leitor é um cliente e, como mandam as regras do bom comércio, o cliente vem sempre em primeiro lugar”. Carvalho, por outro lado, reivindicava o direito de representar o contrário e o contraditório, o inconveniente e o áspero, aquilo que desestabiliza o leitor de um estado de mera fruição – princípio combativo do alto modernismo.
Parece se delinear aqui um binômio confirmado e mais explícito em outra coluna, agora sobre cinema, de algumas semanas depois. Haveria, para ele, duas concepções de cinema antagônicas. Enquanto a primeira teria por base a empatia na relação com o espectador e a transmissão de virtudes e boas mensagens como objetivos, a segunda sacudiria o espectador com filmes desconfortáveis e contra-hegemônicos. Algo similar à oposição feita por Bertolt Brecht entre teatro dramático e teatro épico. É possível até estender as dualidades em melodrama e filme de arte, literatura de entretenimento e literatura de proposta. Em resumo, o cinema apaziguador dos grandes estúdios se harmonizaria muito bem com espectadores passivos, de maneira a minar suas boas intenções e seu potencial político. Já o cinema desconfortável, assentado na dúvida, no trabalho artístico e autoral, aguçaria o fator político justamente por exigir espectadores ativos. Sua forma seria estranha e radical, seus temas seriam as causas perdidas.
No fundo, a régua de Bernardo Carvalho para a avaliação tanto da literatura quanto do cinema tem uma matriz comum. Não é exagerado localizá-la num ensaio fundamental de Max Horkheimer e Theodor Adorno intitulado “Indústria Cultural: o Esclarecimento como Mistificação das Massas”. Para os dois, a indústria cultural proclama a diferença, a estilização e a diversidade, mas, sob o poder do monopólio, produz sempre o mesmo, o idêntico em série, o padronizado. A marca autoral se desmancha na pasteurização, o estilo se homogeniza em invariantes fixos.
De um lado, a grande arte como dissonância, desarticulação entre realidade e representação, verdade negativa; de outro, a indústria cultural consonante ao estado de coisas, endossando-o e agindo como protagonista de sua permanência. Ou seja, os produtos da indústria cultural só variam, entre eles, na aparência, e se assemelham – de modo cada vez mais preciso, em vista dos avanços técnicos – ao mundo, ao passo que as obras de profundidade se distanciam cada vez mais do mundo estabelecido e buscam uma linguagem própria, inconfundível.
A distinção se dá entre fórmula e forma, previsibilidade e perplexidade. Daí o desconforto sentido diante das vanguardas de início do século XX, e o conforto diante de um filme da sessão da tarde. Para Adorno e Horkheimer, com a massificação, “desde o começo do filme já se sabe como ele termina, quem é recompensado, e, ao escutar a música ligeira, o ouvido treinado é perfeitamente capaz, desde os primeiros compassos, de adivinhar o desenvolvimento do tema e sente-se feliz quando ele tem lugar como previsto”. Logo, assistir a um filme, é assistir a todos, ouvir uma canção é ouvir todas, pois são mínimas as variações do sempre igual.
Cuidadosamente dimensionadas, as análises de Adorno e Horkheimer, assim como seus ecos em Bernado Carvalho, são valiosas. No entanto, gostaria de mostrar como as fronteiras demarcadas por eles podem ser borradas por obras nas quais elementos de ambos os lados se interpenetram. Mostrar como as tentativas de separação da cultura em terrenos estanques perdem força, quando estes se comunicam. Para isso, cito primeiro um caso intrigante e depois trato de algo mais sólido.
Jonathan Goldman, no Dossiê 176 da Revista Cult, conta: “James Joyce era viciado em cultura popular. Seus escritos estão, desde o começo, repletos de referências a entretenimentos populares de sua época, bem exemplificados com as histórias de “faroeste” que inflamam a mente do narrador do segundo conto de Dublinenses, ‘Um Encontro’, publicado em 1916, mas escrito mais de uma década antes. Quando publica Ulysses e Finnegans Wake, referências recorrentes a revistas, quadrinhos, canções populares, programas de rádio, filmes, televisão, ficção e fotografia erótica etc. já se tornam norma”. Tendo isso em mente – um dos nomes máximos da alta cultura apreciar e aproveitar a cultura de massas – fica intrigante olhar para a conhecida fotografia de Marilyn Monroe – ícone de Hollywood – lendo, num parque, provavelmente o monólogo de Molly Bloom que encerra o romance monumental do escritor irlandês.
Agora algo mais sólido. Em 1959, Italo Calvino fecha a trilogia dos antepassados com um livro chamado O cavaleiro inexistente. A história, narrada por uma freira em penitência, é sobre um paladino dos tempos de Carlos Magno que busca comprovar seu título de herói. Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez é o seu nome pomposo, ter salvado uma virgindade em apuros é seu grande feito – posto em dúvida a certa altura por Torrismundo. Aquilo que o cavaleiro de armadura branca ostenta no nome, falta-lhe em existência. Agilulfo não existe, é uma consciência no vazio, sem corpo. Em inteligente contraste, seu escudeiro, Gurdulu, é uma espécie de camaleão, imita o entorno, seja ele bicho, fruta ou objeto. “Boa esta! Aqui temos um súdito que existe mas não tem consciência disso e aquele meu paladino que tem consciência mas de fato não existe. Fazem, uma bela dupla, é o que lhes digo!”, o imperador graceja a um velho hortelão. Além de um Quixote invertido, a dupla contraria Descartes.
Dessa forma, reflexão grave e humor se entrelaçam. Aliás, parte considerável do êxito da narrativa resulta justamente desse tipo de conjunção de contrários. A mistura de tons e propósitos se torna essencial. Ao mesmo tempo, por exemplo, que o livro descreve batalhas às avessas de tirar risadas, denuncia a carnificina e a barbárie provocadas pela guerra; fala de grandes reviravoltas, mas também aponta o miúdo do dia a dia, os afazeres, a rotina do exército franco. Em síntese, nele convivem atenção e distração, leveza e aprofundamento, utopia e melancolia, ensaísmo e ficção. Tal jogo entre tensão e distensão faz da leitura um exercício singular. O leitor é levado a sério por Calvino, mas isso não obstrui a empatia, tampouco arrefece o conteúdo político da novela.
Posto isso, talvez as dualidades passem a fazer menos sentido. O agradável e o popular deixem de ser sinônimos de qualidade inferior. O desconforto e a dificuldade, por sua vez, garantias de melhores leitores. E, assim como Bernardo Carvalho se coloca a missão de formar um novo leitor, os best-sellers adocicados podem ser decisivos na formação, antes de qualquer coisa, de leitores, sobretudo num país de mais da metade da população de analfabetos funcionais como o nosso. Lembro, por fim, as palavras de José Paulo Paes, em “Por uma literatura brasileira de entretenimento (ou: o mordomo não é o único culpado)”. Segundo ele, “trata-se obviamente de um erro de perspectiva: da massa de leitores destes últimos autores [de grande vendagem e pouca elaboração] é que surge a elite dos leitores daqueles [de pouca vendagem e grande elaboração], e nenhuma cultura realmente integrada pode se dispensar de ter, ao lado de uma vigorosa literatura de proposta, uma não menos vigorosa literatura de entretenimento”. Ambos nos interessam.