Um romance que consegue despertar um sentimento patriótico em alguém que se diz, ideologicamente, anarquista, precisa ser lido
Diz a lenda que João Ubaldo Ribeiro estava no avião, conversando com um amigo, quando este lhe disse que “brasileiro não escreve livro grande”. Ubaldo afinou o bigode – detalhe que acrescento, pois quem conta um conto aumenta um ponto –, e respondeu que ele aceitava o desafio. Daí nasceu o livro que todo brasileiro deveria ler: Viva o povo brasileiro.
Por que acredito que todo sujeito nascido em terras tupiniquins deveria encarar o calhamaço?
Por motivos literários?
Pode ser também, tem até uma homenagem à Ilíada em modus brasileiro, quando na Guerra do Paraguai, a personagem pede ajuda a seu guia, semelhante ao que acontece na obra de Homero em relação aos deuses gregos, e os guias lhe atendem – “Mas Oxalá, pai dos homens, vê as batalhas. (….) Viu também quando seu filho Oxóssi dardejou para fora dos matos, visível somente para ele como um raio azulado, e empurrou Zé Popó para um lado, evitando que o obus o atingisse.”
Pela diversão?
Os livros de João Ubaldo Ribeiro sempre têm um tom de diversão. Quando os lemos, vemos não somente exuberância literária, mas um interesse notável em prender a atenção do leitor. Em Viva o povo brasileiro, temos inúmeros momentos cômicos, inclusive o momento em que se conta a piada sobre a criação do mundo – Deus estava criando o Brasil, colocando todas as riquezas naturais, diversidade de fauna e flora, quando o anjo tocou nele e disse: “mas Deus, chega a ser injusto com os outros países, olha só quanta coisa o Senhor está colocando nesse país”, ao que Deus teria respondido: “espera só um pouco pra ver o povinho filho da puta que vou colocar aqui…”
Por revelar um Brasil diferente?
De fato, o autor nos surpreende ao contar quatro séculos da história brasileira a partir do ponto de vista da ilha baiana de Itaparica, o que é, no mínimo, absurdamente diferente da visão que estamos habituados a receber da educação básica. Em vez do “ponto de vista carioca”, até justificado, pois o Rio de Janeiro era o centro cultural do país, temos a visão dos baianos – em muitos casos dos próprios escravos (uma história que não ouvimos por aí, certo?).
Ou, o verdadeiro motivo para ler este livro
Caso você ainda não esteja convencido, o principal motivo que podemos eleger é: “porque ele nos faz querer ser brasileiros”.
Pode parecer estranho dizer isso, mas sejamos sinceros, somos muito pouco patriotas. Muitas das vezes, temos até vergonha de nos dizer brasileiros. Colonizados culturalmente pelos americanos, como se eles fossem tão melhores que nós, parece que achamos nossas próprias raízes um tanto quanto “jecas”.
Contudo, ao se fazer a leitura de Viva o povo brasileiro, mesmo ao deparar-se com todos os problemas de nossa formação enquanto nação (algo que não se mascara), saímos com a sensação de que queremos dizer sim, seja aos outros ou ao mundo, que somos brasileiros – esta é nossa identidade cultural.
Preciso registrar que devo, e muito, esta impressão aos discursos de uma personagem chamada Maria da Fé. Dafé, para os íntimos, é uma guerrilheira, no contexto do livro, que luta pelos direitos do povo. Melhor que falar sobre ela, é dar voz a Maria da Fé. Podemos citar vários trechos do livro, mas este, em especial, deveria ser recitado para nossos políticos (ou você não concorda?):
“Seu poder constituído para mim é merda, suas instituições para mim são bosta. Vocês chamam dinheiro de verba ou numerário, chamam furto de apropriação, nomeação de eleição, assassinato de execução, vocês se vestem fantasiados e usam palavras que julgam bonitas, assim concluindo que seus atos são legítimos. Podem ser legítimos para vocês, mas não para nós, que nunca fomos nem ouvidos nem cheirados e temos de aceitar o que vocês resolvem por nós e até o que vocês pensam por nós. Então, porque aquele que condena um homem à fome e à miséria tem um papel na mão, isso se torna menos imoral, se torna certo de alguma forma? Vocês vêm nos dizer verdades. Que verdade é essa, que nos humilha, nos diminui, nos transforma em nada, como pode ser isso verdade para nós? Para mim vocês são a encarnação da mentira e da morte. Mas, assim mesmo, é nossa prática que possam falar em sua defesa. Contudo, falem em sua defesa e não para nos atacar, porque lhe faço calar a boca outra vez, aqui não temos necessidade das palhaçadas de sua justiça, que arma grandes pantomimas para mascarar o que toda a gente já sabe que fará: punir o pobre e premiar o rico. Portanto, a finalidade de deixar vocês falarem, se quiserem, não é que acreditemos que, falando, vocês deixarão de ser os patifes, traidores do povo, que são. Mas é que podem dizer alguma coisa que nos interesse. Falem, se quiserem.”
Ainda discursando ao tenente, combatendo seus argumentos republicanos, Maria da Fé solta uma espécie de profecia:
“O ódio que vocês têm ao povo terá que manifestar-se em toda a sua crueldade e, podem crer, o martírio desse povo poderá ser esquecido, poderá não ser entendido, poderá ser soterrado debaixo das mentiras que vocês inventam para proveito próprio, mas esse martírio um dia mostrará que não foi em vão. Terão de matar um por um, destruir casa por casa, não deixar pedra sobre pedra. E mesmo assim não ganharão a guerra. Só o povo brasileiro ganhará a guerra. Viva o povo brasileiro! Viva nós!”
Um romance que consegue despertar um sentimento patriótico em alguém que se diz, ideologicamente, anarquista, precisa ser lido. Ainda mais em um momento como o que vivemos, às portas das eleições presidenciais do segundo turno. Todo brasileiro deveria ler este livro, por motivos literários, por diversão, por um novo ponto de vista, mas principalmente para repensar sua condição de fazer parte deste país.
Não poderia terminar de outra forma, senão com a frase: “Viva o povo brasileiro! Viva nós!”