O lugar da crença n’Os Versos Satânicos – e o que o extremismo islâmico fez deles

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O lugar da crença n’Os Versos Satânicos – e o que o extremismo islâmico fez deles
Salman Rushdie / google

Uma conversa sobre Os Versos Satânicos de Salman Rushdie, a representação das crenças dessa ficção e parte de seu impacto no (absurdo) mundo real

Versos Satânicos
Salman Rushdie / google


Em uma época tão conturbada de extremismos feito a nossa, há quem busque refúgio ou explicação (se não ambos) em leituras e crenças, de tão difícil que é acreditar no absurdo da realidade. Os Versos Satânicos, de Salman Rushdie, aborda e brinca com crenças e representações delas o tempo inteiro – aos nossos olhos, pois o livro rendeu uma ameaça de morte ao autor, que segundo autoridades religiosas ofendeu a fé muçulmana. Entre a vida sob escolta, pseudônimo e mudanças constantes de moradia, se passaram mais de duas décadas após a publicação do livro, em 1988. Existe a história de uma moça que endossou o coro anti-Rushdie e mudou de lado, mas foi só ela – a fatwa e o ódio ao ficcionista persistem, tão perturbados eles se julgam por uma representação de sua crença. Eu e Vilto Reis, criador e coeditor do Homo Literatus, trocamos algumas ideias sobre o livro e algumas das muitas questões abordadas. 

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Walter: Salman Rushdie é outro autor que fez questão de dizer muito escrevendo muito. Não contou da criação do universo em Os Versos Satânicos porque não quis. O romance é daquelas experiências impactantes de leitura que te forçam a pensar em muitas questões, a começar pela cultura religiosa. Rushdie fala de temas pouco comuns à nossa cultura brasileira, pois as religiões abordadas na obra são quase nichos em nosso país, e ainda que exista uma imagem do Brasil como um país acolhedor para todas as religiões não significa que estejam de fato integradas. Não temos brigas fortes por causa delas, mas as crenças com adeptos menos numerosos ficam na sombra das mais conhecidas.

Vilto: Ao mesmo tempo que vivemos inúmeras discussões sobre fundamentalismo atualmente. Diria que Os versos satânicos é um clássico atual. É um livro complexo, sem dúvidas. Tem aquele aspecto de todo grande romance, que é ser um livro contendo vários livros. Mas penso que nisso tudo há um fio condutor, um personagem que amarra as histórias e que reside nele os conflitos centrais, nosso Saladin Chamcha.

Walter: Temos Saladin Chamcha como um dos autores desses livros, ou ator. Ao lado dele e de Gibreel Farishta, protagonistas das primeiras partes, caímos em uma discussão do livro: a representação e recepção das divindades no mundo atual. O recorte de Salman Rushdie apresenta passado, ascensão e queda desses personagens, e deixa claro o quanto eles andam com passos tortos após se levantarem da queda física.

Vilto: É engraçado que, de certa forma, o livro todo fala de cinema, de representação visual. Gibreel Farishta é o ator mais famoso da Índia. Saladin Chamcha, um indiano que mora na Inglaterra fazendo dublagens. Por acaso, estão em um mesmo avião. E a fim de servirem ao propósito da ficção, estão no mesmo avião que cai e são os únicos sobreviventes. A mutação começa. Gibreel transparecendo seus aspectos angélicos, e Saladin seus aspectos demoníacos. Apesar dessas mutações, os personagens não são, tipo, o centro das atenções no mundo. É como se não houvesse lugar para este tipo de coisa hoje em dia, a não ser no cinema e nos sonhos. Em dado momento, o narrador mostra sua frustração neste sentido: “Os verdadeiros djins de antigamente tinham o poder de abrir os portais do Infinito, de tornar as coisas possíveis, de realizar todas as maravilhas; em comparação, como era banal essa aparição moderna, esse descendente degradado de ancestrais poderosos, esse frágil escravo de uma lâmpada do século XX.” Na realidade, ambos os personagens que se transmutam em seres espirituais (pelo menos em suas formas), são seres que não importam à realidade cotidiana. Tinham muito mais lugar, chamavam mais atenção em suas posições ficcionais, suas profissões. Afinal de contas, o gênero cinematográfico em que Gibreel faz sucesso é o “teológico”. E ambos os personagens são atormentados por sonhos, fantasmas do passado.

Walter: A representação ‘demoníaca’ me lembra de uma fala de um seriado. Um personagem diz a outro que as culturas religiosas tem em comum o fato da figura do mal ser representada por um filho rebelde. Em muitas cenas do Versos o Saladin parece rebelde mesmo, em outras apenas um filho querendo se afirmar, ainda que se distanciando das tradições familiares. Fica claro que ele não é tão diferente do pai embora não perceba, quase como se o pai fosse um duplo dele – enquanto o filho pode ser visto como um duplo demoníaco. Rushdie brinca com mais essa questão o tempo inteiro, dá uma sensação de que ele quer tirar tais convenções de qualquer pedestal, nos fazer questioná-las junto com ele se elas são tão importantes quanto pensamos, ou quanto fomos ensinados a achar que são.

Vilto: Podemos resumir todos os conflitos familiares como representações demoníacas? (risos) O autor desmonta e remonta mitologias, seculariza-as, coloca-as em cheque, mas também faz isso não só com religiões, aproveita para realizar o mesmo com aspectos culturais. Agora uma pergunta de leigo os-versos-satanicos-de-salman-rushdiepra leigo, eu sei, você entende qual a crica dos muçulmanos com este livro? Sei que A Palavra nas tradições religiosas do Oriente Médio é considerada algo sagrado. Um escritor não seria um artista, sim um profeta. Ainda assim, fico meio impressionado com a perseguição que o Salman Rushdie sofre até hoje, mais de duas décadas após a publicação do livro. A única coisa que posso supor é o fato de como o autor apresenta o profeta Maomé com certas dúvidas sobre as revelações.

Walter: De leigo para leigo, segundo eles o livro ofende a crença muçulmana. Rushdie viveu escondido e sob escolta por um bom tempo, mesmo após o falecimento de Ayatollah Ruhollah Khomeini, que declarou em 1989 uma fatwa pedindo a morte do escritor. O próprio Rushdie disse: “Será que ela [a história] só poderia ser contada pela língua determinada pelos mulás iranianos ou muçulmanos, poderia ser contada de maneira irônica ou humorística?”. O autor não apresentou Maomé como um ente todo poderoso tampouco a humanidade como submissa, tanto que é mais uma divindade questionada pelas alegorias do livro. É contraditório como os adeptos de uma crença que ‘os salva’ se voltam contra uma pessoa que faz um recorte dela sem a santificar. Há partes do Versos em que a gente deseja que o enredo volte aos personagens que falamos antes, pois é simultaneamente ambicioso e prolixo. Mais de uma vez tive a impressão que o Rushdie quis demonstrar o quanto conhece e sabe criticar em vez de se focar no enredo. Mesmo assim acho impossível não pensar nessas questões de lugar da crença e de sua representação durante a leitura.

Vilto: Cara, é um livro denso. Com algumas barrigas, em minha opinião – histórias secundárias que davam aquela sensação de “por que estou lendo isso, quero ler sobre os protagonistas.” Ainda assim, um clássico contemporâneo. Considero um livro que será lembrado no futuro, principalmente por fabular um problema que estamos lidando neste momento. Não arranhamos nem a superfície, que dirá dar conta da profundidade da obra. Mas fica aqui nosso convite à leitura do, carinhosamente chamado por nós, Os versinhos do demo (não podia deixar passar sem registrar isso aqui).

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