O Macaco e a Essência: uma morbidez galopante de Aldous Huxley

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Autor conhecido por obras como Admirável Mundo Novo e Contra-ponto, Aldous Huxley vai além em O Macaco e a Essência.

6d1d1aa05ca3299b6941dbc181940bb1Enquanto o colega desanca o mundo porque este não aceita seus talentos, o narrador está com a cabeça na lua, na morte de Gandhi, no céu, menos ali. Ah, o maldito comercialismo, esses estúdios de cinema que não pegam os meus roteiros, tudo bem, já entendi, o narrador de O Gênio e a Deusa, de Aldous Huxley, só não termina de afundar o cara por um mínimo de educação.

E porque não vale a pena, ele fica de depósito para as reclamações do amigo e também para o ouvir se gabar de um caso extraconjugal como qualquer outro dele. É a mesma conversa viciada, ambos sabem de como o casamento do amigo não acaba por mera conveniência e tudo o mais, mas a realidade está de folga porque o narrador ainda está imerso em seus devaneios.
Até aqui pouca novidade para uma narrativa do Huxley, um personagem reclamando de sua miséria e outro com a cabeça tão difusa quanto um google chrome com dez abas abertas em dez sites diferentes. Mas o narrador e seu amigo ainda estão quase a esmo nos estúdios de cinema, e por pouco escapam de serem atropelados por um caminhão. Tamanha a pressa que alguns de seus conteúdos caem: o veículo levava pilhas de roteiros para descarte. Os personagens olham alguns, mas apenas um realmente os atrai: O Macaco e a Essência, de William Tallis.

A bizarra narrativa os cativa tanto que não tarda para eles irem atrás do autor dela. Meio caminho (pseudo) estrada deserta adentro, eles se acham em uma casa velha onde Tallis morou por um tempo. Conhecem a família com quem ele se hospedou: uma senhora muita simpática, um marido semelhante a um gnomo, uma neta querida com quem o amigo do narrador foi conversar… E Tallis, onde está?

“- O sr. Tallis passou há seis semanas.
– A senhora quer dizer que ele morreu?
– Passou – insistiu ela, e em seguida pôs-se a contar verbosamente sua história.” (1987, p22)

E que fazer diante disso… Voltar para a cidade, talvez. Torcer para não ter outro caminhão desgovernado na próxima ida aos estúdios. Ou só se perder noutro devaneio mesmo. Ou em um lugar mais interessante.

E então temos a segunda parte do livro em nossa frente, e nela começa o livro de verdade. É O Macaco e a Essência, director’s cut. Há descrições detalhadas bem ao modo Huxley mas condensadas como um roteiro de cinema, pois não são apenas os passos dos personagens que nos levam a uma nova cena, e sim os planos e closes da narrativa.

Nela, temos um grupo bem-ajeitado de cientistas explorando uma ilha devastada pela terceira guerra mundial. O ilustre narrador desta segunda parte do livro nos apresenta o botânico Alfred Poole, um personagem que lentamente se torna o mais próximo de um protagonista. Poole esbanja downloadseu conhecimento ao notar uma planta e suspeita ser uma espécie rara, e isso impressiona uma colega sua, embora ela seja extremamente secundária aqui (e para o botânico também). Adiante, noutra cena o grupo se separa. E o singelo apreciador de plantas tem de colher o real daquela ilha.

Não é ‘apenas’ a devastação física, e sim o inferno que aquele terreno se tornou. Poole conhece os habitantes e seu estado semi-humano, e toda sua argumentação de homem da ciência é inutilizada diante daquela sociedade rígida e irracional. E sua vida também, pois ele é quase enterrado vivo por um grupo de coveiras que só queria se divertir. Em uma conversa com um arquivigário, este faz uma refeição tranquilamente enquanto gritos de crianças deformadas pela radiação cortam o ar. Sim, radiação – essa foi a causa da terceira guerra, embora os moradores da ilha, adoradores e eternos escravos de Belial sem direito a informação ou uso livre dos próprios instintos, sempre a chamem de A Coisa.

“Outra vez essas lágrimas, esses sintomas de personalidade” (1987, p.133)

Corte para o grupo de cientistas do qual Poole se separou por acidente. Um núcleo enorme de personagens não importa desta vez. Corta para uma descrição do céu e das montanhas, parcialmente inspirados por paisagem que o autor pôde ver. Mais um corte, para os diálogos dos personagens caros à trama e seus cenários de fundo, enquanto a voz do narrador deste roteiro chamado O Macaco e a Essência se torna mais clara – e isso não é um alívio. E um último close para Poole, o homem apegado aos livros e à Mãe ciência, recitando versos de Percy Bysse Shelley como se estivesse andando no parque. Talvez seja mesmo um, se fechar os olhos para o mundo ou tenta-lo transpor a força.

“Com velocidade e leveza, uma sucessão de desgraças, suplícios e massacres corre pela página, salta de capítulo em capítulo, se ramifica e multiplica sem provocar na emotividade do leitor outro efeito além de uma vitalidade alegre e primordial” (2007, p.110).

Assim Ítalo Calvino escreveu sobre o Cândido de Voltaire, e não é exagero associar tal descrição de ritmo a este livro de Aldous Huxley. Não temos capítulos, e sim cenas galopantes de morbidez nessa ilha. É um pouco dificil sentir pena dos personagens, não por eles não merecerem, mas devido à forma como seus infortúnios são contados – com uma profunda e sutil ironia, a maneira de Voltaire.

E esta cruza entre metaficção e roteiro de cinema é uma de suas obras mais interessantes. O próprio teve experiências no ramo do cinema, o que explica em partes a narração deste livro. O Macaco e a essência tem um toque distópico como Admirável Mundo Novo, seu livro mais famoso, embora a direção de cada distopia seja radicalmente oposta, assim como sua forma e complexidade. Esta sua nona ficção, publicada em 1948, tem um pouco de muitas obras anteriores mas sem gastar suas referências: há entrelinhas o suficiente que revelam temas caros a Huxley, mas já não era o mesmo autor de Admirável Mundo Novo (1932) e Contraponto (1928) escrevendo apenas com pessimismo ou pura ironia, e sim uma versão um pouco mais polida à qual foi acrescentada alguma dose de irracionalidade e direções diferentes de sua imagem excessivamente intelectual de antes, evidenciada em O Gênio e a Deusa (1955) e neste aqui. Ele abraçou o absurdo e o tirou para uma valsa neste livro, e quer ver você se perdendo e se horrorizando (ou não) nessa dança macabra. Levanta!

Referências:

HUXLEY, Aldous. O Macaco e a Essência. 2a ed.Rio de Janeiro: Globo, 1987.

CALVINO, Italo. Porque Ler os Clássicos. 3a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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