O monstro moderno/contemporâneo urbano é essencialmente humano, como se pode ver nas histórias de João do Rio.
A narrativa urbana de João do Rio explora uma faceta sombria da cidade. É comum que seus personagens apresentem algum tipo de monstruosidade moral, disfarçados pelo anonimato das massas. O caos das grandes metrópoles gera uma sensação de desconfiança e temor constante. A falta de conhecimento do outro provoca insegurança. O leitor, porém, ciente do enredo ficcional que acompanha, pode frui-lo confortavelmente, sem se sentir ameaçado de fato. Ele se permite horrorizar e fascinar pelos relatos desses tipos singulares.
Segundo as teses de Jerome Cohen, todo monstro é um constructo social, isto é, ele incorpora os medos de uma sociedade. No caso do monstro humano, o medo do outro. Por atuar sempre nos limites entre o aceitável e o proibido, essa criatura causa repulsa por sua conduta reprovável e atração por sua peculiaridade, pela liberdade de praticar ações condenáveis, muitas vezes sem chegar a ser punido.
No conto Dentro da Noite, de João do Rio, Rodolfo conta a um amigo, durante uma viagem de trem, sua compulsão em espetar moças com alfinetes. Ele começou por sua noiva, sentindo a necessidade inexplicável de machucar a pele branca de seu belo braço, fazendo-a sofrer. Ela aceita passivamente a tortura, revelando-se a vítima perfeita para o sadismo do noivo. Até que o rito é interrompido quando o pai descobre e desfaz o compromisso. Rodolfo, então, procura prostitutas, que passam a desprezá-lo por sua crueldade inofensiva. Enfim, ele passa a atacar jovens aleatórias na rua, vítimas de oportunidade.
Rodolfo descreve a sensação dúbia de horror e prazer que lhe causa a consumação de seu desejo sádico:
“Deitado, a delícia daquela carne que sofrera por meu desejo, a sensação do aço afundando devagar no braço da minha noiva, dava-me espasmos de horror! Que prazer tremendo! E apertando os varões da cama, mordendo a travesseira, eu tinha a certeza de que dentro de mim rebentara a moléstia incurável. Ao mesmo tempo que forçava o pensamento a dizer nunca mais farei essa infâmia! Todos os meus nervos latejavam: voltas amanhã; tens que gozar de novo o supremo prazer! Era o delírio, era a moléstia, era o meu horror…” (RIO, 2002, p. 21)
O narrador, outro passageiro do vagão, que finge estar dormindo, representa, de certo modo, as reações do leitor, pois, ainda que fique espantado com o relato do sujeito, não consegue parar de prestar atenção em sua história, movido pela curiosidade.
O sadismo de Rodolfo não chega perto de ser letal, tornando-se mesmo risível. Por seu aspecto estranho, aliado a certa comicidade, é possível afirmar que Rodolfo seria um monstro grotesco.
O conceito de grotesco vem da palavra italiana “grotta” (gruta); um tipo desconhecido de ornamentação foi encontrado em grutas de regiões da Itália, no século XV. Com o passar do tempo, a definição do termo foi ampliada. De acordo com Wolfgang Kayser, o grotesco, como adjetivação, caracterizaria algo que foge aos padrões conhecidos, repugnante e ridículo ao mesmo tempo. Assim, ele apresenta pontos em comum com a definição de monstruosidade: ambos desafiam os conceitos de sua época, desobedecendo a padrões pré-estabelecidos; representam uma alteridade temível, o diferente, o outro, o desconhecido. O que diferencia o grotesco é sua propensão ao humor. Dessa forma, um sádico pode ser monstruoso por seu comportamento anormal e ameaçador, e um monstro pode ser grotesco por seu caráter, cômico, em maior ou menor grau.
Se, em Dentro da Noite, a monstruosidade grotesca é de ordem psicológica, em outro conto do mesmo autor, O Bebê de Tarlatana Rosa, a deformidade da personagem é primeiramente física. Heitor relata uma aventura de Carnaval a um grupo de amigos: ele encontrou, durante os bailes, uma moça atraente vestida de bebê; em certa oportunidade, os dois se afastam da multidão para namorar; o rapaz, incomodado com o nariz postiço de sua companheira, arranca-o e descobre um buraco no lugar do verdadeiro nariz. Enojado com a situação e furioso com o bebê, ele acaba indo embora.
“O nariz roçava o meu, o nariz que não era dela, o nariz de fantasia. Então, sem poder resistir, fui aproximando a mão, aproximando, enquanto com a esquerda a enlaçava mais, e de chofre agarrei o papelão, arranquei-o. Presa dos meus lábios, com dois olhos que a cólera e o pavor pareciam fundir, eu tinha uma cabeça estranha, uma cabeça sem nariz, com dois buracos sangrentos atulhados de algodão, uma cabeça que era alucinadamente — uma caveira com carne…
Despeguei-a, recuei num imenso vômito de mim mesmo. Todo eu tremia de horror, de nojo.” (RIO, 2002, p. 49)
Uma explicação possível para a ausência de nariz do bebê seria a doença da sífilis, muito temida na época e associada ao homossexualismo. O bebê também poderia ser um homem, conforme sugere o personagem Anatólio. No início do século XX, a prática homossexual era socialmente condenada. Além disso, a época do Carnaval remete a um ambiente de luxúria, que perpassaria, durante alguns dias de liberação, as regras impostas pela boa conduta. O companheiro fantasiado de Heitor, de uma forma ou de outra, representaria a ultrapassagem de um limite. Apenas durante o Carnaval ele tem liberdade de circular sem ser percebido como uma figura repulsiva e uma ameaça em potencial, já que pode transmitir sua doença a outros. A situação bizarra da narrativa também permite classificar o personagem do bebê como um monstro grotesco.
O monstro moderno/contemporâneo urbano é essencialmente humano. Por sua difícil identificação, ele transita livremente pela cidade, como um predador à espreita, por vezes assumindo aspectos grotescos, e escapa impune de suas ações perversas. Ele incarna outro universo representativo, quebrando as convenções conhecidas e revelando as falhas do sistema vigente.
“O mundo do grotesco é o nosso mundo – e não o é. O horror, mesclado ao sorriso, tem seu fundamento justamente na experiência de que nosso mundo confiável e aparentemente arrimado numa ordem bem firme, se alheia sob a irrupção de poderes abismais, se desarticula nas juntas e nas formas e se dissolve em suas ordenações.” (KAYSER, 2009, p. 27)
O monstro humano, no caso, externa o lado mais obscuro do ser humano, seus desejos mais inadmissíveis e irrefreáveis, que podem se voltar contra o outro. O problema da violência urbana, das doenças e patologias é escancarado por meio de personagens como Rodolfo e o bebê de tarlatana rosa.
“Esses monstros nos perguntam como percebemos o mundo e nos interpelam sobre como temos representado mal aquilo que tentamos situar. Eles nos pedem para reavaliarmos nossos pressupostos culturais sobre raça, gênero, sexualidade e nossa percepção da diferença, nossa tolerância relativamente à sua expressão. Eles nos perguntam por que os criamos.” (COHEN, 2000, p. 55)
O monstro grotesco é uma realidade indesejável, porém possível. E o leitor, seguro pelo espaço ficcional, temeroso ao refletir sobre os perigos que o cercam de verdade, fica ansioso por compreender o monstro e, com isso, compreender melhor a sociedade e talvez a si mesmo.
Referências Bibliográficas
COHEN, Jeffrey Jerome. A cultura dos monstros: sete teses. In:__. A pedagogia dos monstros: os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, pp. 25-55.
KAYSER, Wolfgang. O grotesco; configuração na pintura e na literatura. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2009, pp. 17-27.
RIO, João do. Dentro da noite. In:__. Dentro da noite. São Paulo: Antiqua, 2002, pp. 17-25.
___________. O bebê de tarlatana rosa. In:__. Dentro da noite. São Paulo: Antiqua, 2002, pp. 47-50.