
Bambi – Uma história de vida na floresta, de Felix Salten, é um clássico infantil que, mesmo em sua dureza e simplicidade, é tão delicado quanto complexo

Poucas histórias podem ser realmente chamadas de agridoces. Por mais que misturem doçura e amargor, acabam caindo mais para um dos lados. Ou envolvem tantos sentimentos no enredo que classificá-las com um único adjetivo seria um reducionismo injusto. No entanto, este é o caso de Bambi – Uma história de vida na floresta (2015), clássico da literatura infantil publicado por Felix Salten em 1923. Sucesso imediato, alcançou maior notoriedade após a adaptação cinematográfica da Disney, em 1942.
O filme, aliás, é tido por muitos como um dos mais impactantes do estúdio, por cenas como a da morte da mãe do protagonista e a do incêndio que destrói a floresta. Mas quem acha que a Disney capturou o espírito da história original ao lidar com a morte e a perda, esquece que o longa conta com cenas dedicas exclusivamente a amenizar esses elementos. Não é o caso da obra literária.
O que começa com o que parece uma visão açucarada das descobertas feitas pelo jovem Bambi na floresta logo se transforma em um relato franco, forte e inteligente sobre a vida selvagem e a intervenção humana sobre ela. Salten consegue relatar a rotina e o convívio entre os animais sem projetar valores humanos em suas ações. Afeto, liberdade, solidão… Bambi sente isso, mas não da forma como um protagonista humano sentiria. A necessidade de sobrevivência e a aceitação de certas condições – inerentes ao funcionamento de qualquer ecossistema – permeiam suas atitudes e desejos. Ainda assim, temos um protagonista capaz de questionar o mundo a sua volta, sedento por entender quando é capaz de alterá-lo.
A narrativa o acompanha desde o nascimento até a maturidade, passando pela abundância do verão, as mudanças do outono, a dureza do inverno e o renascer da primavera. Outros personagens o acompanham nessa jornada: sua mãe, que desde cedo lhe ensina as regras da floresta; os príncipes, cervos que vivem afastados dos filhotes e fêmeas, exibindo suas coroas; Falina, sua companheira de brincadeiras e, posteriormente, interesse amoroso; Gobo, irmão de Falina, seu amigo de infância adotado por humanos; o Coelho, para quem a vida é sempre dura; a orgulhosa Corujinha, que acredita piamente que Bambi sempre se assusta com suas investidas; o Velho Príncipe, mais antigo e sábio dos cervos, mentor de Bambi; Marena, a cerva gentil que acredita que Ele e bichos farão as pazes; Nettla, a cerva cansada de cuidar de filhotes; o Esquilo, a Raposa, os Alces, o Cachorro, e, claro, Ele. A criatura mais terrível da floresta, com patas brilhantes que disparam trovões capazes de abater qualquer animal.
Para cada momento de encanto e paz, o livro apresenta um instante de tensão e dificuldade. Um lado não existe sem o outro. Bambi percorre os caminhos da floresta ao lado da mãe, que passa a rechaçá-lo por “não ser mais um filhotinho”. Os bichos se divertem no descampado, pouco antes de serem encurralados por Ele numa sanguinolenta caçada. Bambi é reconhecido como príncipe, apenas para escolher o isolamento. Nosso protagonista vai se refrescar num lago e observa um grupo de patinhos sendo treinados pela mãe a se esconderem das ameaças. Num instante, a pata é abocanhada pela Raposa, e os órfãos interpelam seu observador para saber sobre ela. Bambi segue seu caminho, porque a vida quis assim.
Um dos mais belos trechos do livro é o diálogo entre duas folhas prestes a cair, na virada do outono para o inverno. Uma das folhas diz que a floresta não está mais como antes – as árvores estão peladas, ela mesma ganhou uma coloração marrom, feia:
– Será que é verdade – disse a primeira –, será que quando formos embora outras ocuparão o nosso lugar e depois outras e outras…?
– Claro que é verdade – sussurrou a segunda –, não gosto nem de imaginar… não dá para entender.
– E a gente fica muito triste com isso – acrescentou a primeira. Ficaram caladas por um tempo. Então a primeira disse baixinho para si mesma: – Por que temos de ir embora…?
A segunda folha perguntou: – O que vai acontecer conosco quando cairmos…?
– Nós vamos descer…
– O que tem lá embaixo?
– Não sei – respondeu a primeira. – Uns dizem uma coisa, outros dizem outra…mas ninguém sabe.
A segunda perguntou: – Será que a gente ainda sente algo, será que ainda tem consciência de si lá embaixo?
A primeira respondeu: – Quem pode dizer? Nenhuma das que desceram voltou para contar (SALTEN, 2015, p. 74).
A companheira a consola, diz que continua linda, “[…] talvez aqui e ali tenha aparecido uma mechinha amarela quase imperceptível, o que só deixa você ainda mais bonita” (p.75). A outra agradece: “Sempre foi tão boa comigo…só agora compreendo de verdade como você foi boa” (p. 75) . Não terminam a conversa. Uma das folhas se desprende – a mais velha das duas – e o inverno começa.
As reflexões vêm desse jeito, secas e retumbantes, como maretas que ondulam na água após o arremesso de uma pedra. E entramos no ritmo do livro, no ritmo dessa floresta que ao mesmo tempo é literal e metafórica, guiados pela sabedoria do Velho Príncipe que, em sua rigidez generosa, repassa a mais importante das lições: “Ouvir, farejar e olhar por conta própria. Você tem de aprender a averiguar por si só”.
Referência:
SALTEN, Felix. Bambi – Uma história de vida na floresta. Trad. Christine Rohrig. São Paulo: Cosac Naify, 2015.