O narrador que conta a sua própria história

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Breves considerações sobre o narrador autodiegético e seu jeito subjetivo de nos apresentar as histórias de um determinado texto literário 

Anonymous woman reader  Lectora anónima (ilustración de Kenton Nelson)
Ilustração: Kenton Nelson

O narrador de uma obra literária é a instância responsável por contar uma história em um texto narrativo, isto é, cumpre a função de uma voz fundamental dentro da narrativa e cumpre com a função, também, de ser o agente de focalização que afeta a história a ser narrada.  É ele que nos apresenta os personagens e os eventos do texto narrativo. A voz do narrador desempenha uma função de interpretação do mundo narrado e pode até mesmo assumir uma função de ação neste mundo narrado.

Há algumas classificações principais de narradores: o narrador heterodiegético, aquele que não participa da história narrada, apenas a conta, trata-se de um “eu” explícito ou narrador apagado; o narrador homodiegético, aquele que é um dos personagens da história por ele narrada, participa dela; e o narrador autodiegético, um subtipo do narrador homodiegético, que é aquele que não só participa da história, mas conta a sua própria história no texto narrativo. Não por acaso, este último narrador mencionado nos interessa nesse momento.

O narrador autodiegético também é chamado de narrador-personagem, ou narrador-protagonista. Isto significa que este narrador, de certa forma, irá adicionar fatos relevantes ao enredo, pois tudo no texto literário nos é apresentado por ele quando conta a sua própria história. No entanto, todas as percepções, todos os acontecimentos, todas as características de personagens são dadas por ele de forma altamente subjetiva, ou seja, temos acesso apenas a sua versão dos fatos, o que potencializa uma narrativa não confiável, duvidosa.

Em A retórica da ficção (1980), o crítico literário Wayne E. Booth defende a ideia de que os narradores usam diversos recursos a fim de manipular o leitor, eles podem dar seus toques pessoais e manter a não confiabilidade narrativa fazendo uso do “contar versus mostrar”, ferramenta que marca a subjetividade e a manipulação narrativa. Um personagem pode agir de uma forma, conforme é narrado, porém isso nem sempre é verdade, pois as ações podem ser distorcidas no momento do narrar, apresentadas de forma subjetiva. A teoria de Booth abre caminho para percebermos que um narrador (mesmo heterodiegético, que é o nome atual do antigo “de terceira pessoa”) pode falsificar a história que conta, sobretudo esse que chamamos de autodiegético.

Fica a pergunta: mas esse narrador autodiegético está presente em muitas obras literárias? Sim, está muito presente, sobretudo nas narrativas contemporâneas, esta parece ser uma tendência das obras literárias atuais, não que isso seja algo novo, pois já existia lá em Machado de Assis, mas nos parece que esse narrador tem aparecido cada vez mais, com seu jeitinho manipulador e dono na verdade de ser.

Alguns exemplos desse tipo de narrador, e aqui foco na literatura brasileira, são: Lavoura arcaica, de Raduan Nassar; Juliano Pavollini, de Cristovão Tezza; Não verás país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão; Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino; entre tantos outros.

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