O poder da escatologia

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Esperma, mijo, caspa, fezes, peido, odores, vômito, espirro, nhaca, perdigoto, suor, catarro, bolo de muco, cuspe, meleca, secreções e excrementos em geral. De Aristófanes a Reinaldo Moraes, passando por Rabelais, Bukowski e Rubem Fonseca, entre outros. Não são poucos os escritores que fizeram e fazem uso da escatologia em suas obras. Mas, embora excretar seja uma ação ordinária de todo organismo vivo, quando vista em livros, ainda causa certa repulsa. Há quem torça o nariz, se sinta aviltado e menospreze qualquer manifestação artística que traga uma visão excrementícia, como se não fosse humana.

Civilizados, vestidos, protegidos, alimentados, medicados e cheio de pudores, tudo que alguns leitores não querem é justamente pensar sobre a condição humana, lembrar-se de que são homens, como disse Montaigne: no mais alto trono do mundo o homem senta-se sobre o seu traseiro. Grandes escritores não devem se ocupar apenas dos sentimentos de seus personagens, mas também dos seus fluidos corporais. Devem pensá-los em todas as suas dimensões. Do prosaico ato de urinar ao êxtase do prazer sexual, sem suprimir os movimentos peristálticos do intestino – seja para satirizar ou registrar com fidedignidade a vida.

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Louis Ferdinand Céline, autor de Morte a Crédito

Talvez a mais extraordinária passagem de viés escatológico esteja em Morte a Crédito, do Céline. Espero que não esteja de estômago cheio. O protagonista atravessa o Canal da Mancha. O mar está revolto e a pequena embarcação, lotada de passageiros, balança bastante, de um lado ao outro, subindo e descendo nas ondas. Vontade certa de colocar tudo pra fora. Quem nunca? Enjoados, todos a bordo começam a vomitar. Mas o texto é estupendo de tal forma que nos levar a crer que é todo o universo que expele todo tipo de porcaria e excrescências naquele instante. O escritor transforma o asco em arte.

Escatologia tanto pode ser o estudo dos excrementos quanto o ramo da teologia e da filosofia que se preocupa com o fim dos dias. À primeira vista pode até parecer que há uma imensurável disparidade entre as duas acepções da palavra, mas a linha que separa uma da outra é mais tênue do se pensa. O grotesco e o sublime podem andar lado a lado e de mãos dadas. Esse é o poder da escatologia.

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