O Poema Sujo, de Ferreira Gullar

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O Poema Sujo, de Ferreira Gullar, tem a cara e a coragem tipificada de nosotros embru/tecidos nessa republiqueta Pindorama S/A, de tantos lusonautas (de afrobrasilis a tupidavídicos) como filhos mestiços – e amalgamados – de uma panamérica-latina em closes e fragmentos de matizes.

O Poema Sujo tem um olhar entre o sub e o sobre, com consoantes oclusivas, meio mantra-blues, meio fadobanzo, colocando a alma dessa terra que a brisa beija e balança, para depois pescar tristices pegajentas, entre o oráculo do limão e a tez chão de brasilíndios, afrodescendentes e suas pensagens liricamente dolorosas. O Brasil dói. Drummond dizia “Como a vida é forte/Em suas algemas”. Ferreira Gullar pega a palavra turva pelo coice dela, crava a craca de um plangente tempo – a olho nu (ou ponto de fuga?) – que veio de históricas injustiças a privações desmemoriadas; de escravaturas a reféns dos morros, pondo a sua criação-macadame naquilo que faz ao botar a boca no mundo e gritar lamentos e moendas entre cisternas de uma bruteza que berra. A injustiça é um palavrão. Toda história é remorso, e todo poema é contação, prisma de um olhar.

Não acredito em arte que não seja libertação (Bandeira), e Gullar é isso em timbres e tons e tais. Ferreira Gullar com o Poema Sujo põe a nu o pântano das aparências. Poema Sujo é o rosto de um povo, de um tempo, de um lugar. O hino nacional às avessas, dentro de si e acima de todas as coisas e causas. Grita o martírio dos infelizes, dos oprimidos, a voz magma do povo, o talo pedrês, a gramática de arame, cacos de espelho e espinhos de cactos, feito um vinho-verbo de cálice transbordantemente tropical, entre as mazelas dos sub-cretinos e os podres poderes palaciais. É a dor letral, o horror letral ainda e precisamente nas suas intertextualidades.

Rimbaud dizia “O artista é antena de sua época”. Leon Tolstoi dizia “Canta a tua aldeia e serás eterno”. Esse é Ferreira Gullar. Sua identidade-impressão (recolhes de sentidor) é o Poema Sujo. Navalha na acne, a poesia de Gullar tudo aproveita – e tudo nele se trans/forma – o húmus, a violação da regra-norma; sujeiras e descontentezas, desvairados inutensílios filosofando reflexões em campos minados.

O Poema Sujo de Ferreira Gullar é o ponteio poético com as rebarbas de odes xucras, incendiário, portanto, dizendo do mar de sargaços – pátria minha, língua mátria – por isso é um poema Peri/gozo. Ele é em si mesmo um trovador pós-moderno a poetar esse seu trabalho top de linha, um porta-lapsos de palavras, espectros entre escombros – desabandonos e picumãs – alma em transe, veias abertas possíveis. É capa e espada, crime e castigo, campo de lavanda de pesadelos, dedo em riste, consciêncial, barulhando delimites e cifrando horizontes pisados. É uma porção-crusoé, uma decantação, com ele macunaímico feito um lázaro entupido de angústia, cirurgicamente pinçando dezelos sociais, todos destramelados nas palavras.

O Poema Sujo de Ferreira Gullar registrou seu tempo, pontuou suas dobradiças entre o sujo e o belo, o feio e as cantatas; nas erratas de uma historicidade que gerou desmandos e desmundos. Ferreira Gullar é o pai da palavra que em bateia de granizos cata o que resta da ceifa, como um recolhedor das lágrimas advindas depois da bala perdida, do medo-coragem, da solidão-palhaço; faz de seu versejar uma metralhadora cheia de lágrimas e atira a vida virulenta no ventilador das ideias, com as duras cetras de estrofes em lã de lodo. Ferreira Gullar peca, sabe o que é um pé no sacro, mas, figura o seu estado letral como se uma agonia; sobe e desce memórias revisitadas, destila os pedaços de frutas secas e põe vida e viço lírico na dor, na morte, na reconstrução das seqüelas, meio pan-neodadaísta (neoconcreto?).


O Poema Sujo de Ferreira Gullar deveria ter uma tarja preta? Ou estar escrito por sobre, cuidado, é humano? Domenico Mais dizia que a criatividade é impertinente. Ferreira Gullar quando escreve faz uma confissão-endereço.

poema-sujoNietsche dizia que a arquitetura correspondente à natureza da alma humana, era um labirinto. Pois ele coloca os pingos nos jotas. O corpo-poema, Poema Sujo de Ferreira Gullar e sua capacidade de se expressar, é uma catedral-poema com todas as suas cruzes-lágrimas, dores coletivas, impunidades generalizadas.

O Poema Sujo entre o muro e o turvo, a palo seco, era todo um universo mal cabido em si, mas afinado em si, tocado no ser de si, por isso poema longo, grosso como açúcar seco, entre onomatopéias e jogos de palavras, Palavras punhais. Sal grosso. Incêndios. Ferreira Gullar do Poema Sujo tirou sangue-e-vida-(e luz?) de trevas.

Se o poeta é um mundo encerrado no homem (Victor Hugo), o Poema Sujo de Ferreira Gullar é um homem libertado no poema mais visceral e por isso mesmo contundente, verdadeiro, dolorosamente verdadeiro. Garimpeiro, ourives, esse é Ferreira Gullar. Ideias e palavras. Poema como um organismo vivo. O Poema Sujo de Ferreira Gullar é um dos melhores poemas escritos em “língua brasileira”.

Poema Sujo
Ferreira Gullar
José Olympio Editora

 

 

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