Sem poder esmagar a iniquidade
Que tem na boca sempre a liberdade,
Nada no coração;
Que ri da dor cruel de mil escravos,
— Hiena, que do túmulo dos bravos,
Morde a reputação!…
(Castro Alves)
Castro Alves ou o dono do canto dos aflitos, como costuma ser chamado, nasceu em 1847 e faleceu em 1871. É conhecido como o maior poeta brasileiro da poesia social romântica. Escreveu em um período de grandes transformações sociais no país: período em que o Império estava em decadência e os jovens acadêmicos já passavam a se preocupar com as causas republicanas e socialistas. E em meio a essas transformações, distante do nacionalismo ufanista, o poeta trata de questões nacionais pautadas em uma ferrenha crítica social.
Entre os diversos temas sociais, o mais notável e importante de suas obras foi a denúncia da escravidão no Brasil, que lhe fez conquistar o epíteto de “Poeta dos Escravos”. Os negros foram seus protagonistas. E transformou o Romantismo, mudando sua rotação, se assim podemos dizer. Ao invés de mostrar o escritor voltado para si mesmo, Castro Alves mostrou-o atento ao mundo em seu redor, tentando combater as injustiças.
Vejam o trecho a seguir de Ao romper d’alva, do livro Os escravos: “Oh! Deus! não ouves d’entre a imensa orquestra / Que a natureza virgem manda em festa / Soberba, senhoril, / Um grito que soluça, aflito, vivo, / O retinir dos ferros do cativo, Um som discorde e vil?”.
Os versos acima apresentados subvertem ao tratamento dado à natureza pelos primeiros românticos, pois a crítica à escravidão está presente justamente no confronto entre os sons da natureza e os sons associados à condição serviçal dos negros. O poema representa um lado nada glorioso do país, que tivera, até então, ignorado pelo movimento romântico.
A poesia social de Castro Alves comovia para persuadir. A partir de sua influência pelo poeta francês Vitor Hugo, escreveu poesias capazes de sensibilizar os leitores no que diz respeito ao trabalho escravo. Persuadia poeticamente com base na emoção, para, assim, convencer pela argumentação.
A linguagem do poeta parte de um tom grandiosamente emocional, propriamente adequado para a declamação envolvente em espaços públicos, como praças e teatros, onde, em geral, os poemas eram apresentados. Um exemplo é o poema Vozes da África, que pede ao leitor um tom vibrante para dar vez e voz ao continente africano. Segue o poema (experimente lê-lo em voz alta):
Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito…
Onde estás, Senhor Deus?…
Qual Prometeu tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia
– Infinito: galé! …
Por abutre – me deste o sol candente,
E a terra de Suez – foi a corrente
Que me ligaste ao pé…
O cavalo estafado do Beduíno
Sob a vergasta tomba ressupino
E morre no areal.
Minha garupa sangra, a dor poreja,
Quando o chicote do simoun dardeja
O teu braço eternal.
Minhas irmãs são belas, são ditosas…
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas
Dos haréns do Sultão.
[…]
O poema Vozes da África reclama o fim dos crimes contra seus filhos e a reparação da injustiça contra eles. As figuras de linguagem, com as metáforas, comparações e inversões, acompanhadas da apóstrofe do início, que é direcionada a Deus, fazem com o que o texto torne-se impactante sonoramente. A propósito, uma das grandes marcas da poesia social de Castro Alves é o abundante uso das figuras de linguagem.
Embora reconhecido como o poeta engajado, Castro Alves também escreveu poemas com características da segunda geração do Romantismo. Em certos poemas seus, há traços de morbidez byroniana¹, da reprimida sensualidade e da melancolia, traços esses característicos da geração. Porém, não é esse tom que caracteriza a maior parte de seus poemas.
Navio negreiro é um dos principais e também um dos mais conhecidos poemas de Castro Alves, certamente todos devem ter lido-o na escola. O poema foi escrito em 1868, época em que o tráfico de escravos já era proibido no Brasil, contudo, a escravidão e seus efeitos desumanos ainda persistiam fortemente. É para denunciar essa condição miserável dos escravos que o poeta valeu-se do drama enfrentado pelos negros durante sua travessia da África para o nosso país. O poema é longo, portanto, segue abaixo apenas algumas partes que compõem o poema, mas vale a pena buscar lê-lo por completo.
IV
Era um sonho dantesco… O trombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros… estalar do açoite…
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar…
Negras mulheres… suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras, moças… mas nuas, espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs.
E ri-se a orquestra, irônica, estridente…
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais…
Se o velho arqueja… se o chão resvala,
Ouvem-se gritos… o chicote estala.
E voam mais a mais…
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece…
Outro, que de martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
No entanto o capitão manda a manobra
E após, fitando o céu que se desdobra
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
“Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!…”
E ri-se a orquestra irônica, estridente…
E da roda fantástica a serpente
Faz doudas espirais…
Qual n’um sonho dantesco as sombras voam!…
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!…
Os donos dos navios negreiros, ou navios tumbeiros, lucravam de acordo com a quantidade de negros que transportassem, por isso faziam o possível para transportar o maior número possível, e não havia preocupação alguma com o conforto. Inicialmente, os negros eram transportados em porões; com o passar do tempo, no século XVIII, passaram a ser transportados em navios maiores, de três andares. No andar inferior ficavam os jovens meninos, rapazes e homens adultos; no andar intermediário ficaram as mulheres; no andar superior ficavam as grávidas e as crianças menores. Os prisioneiros viajavam sentados em filas paralelas, cada um com a cabeça apoiada sobre o corpo de quem estava à frente. E graças à superlotação mais as péssimas condições de higiene, a cada viagem havia um gigantesco número de morte dos passageiros.
A parte IV, que compõe uma das seis partes do poema, apresenta ao leitor um pouco das desumanas condições dos negros. O poema em um todo, passa a limpo as condições de transporte dos navios negreiros e como eram tratados os prisioneiros. Ao referir-se ao dantesco, Castro Alves faz referência às terríveis cenas descritas pelo escritor italiano Dante Alighieri, em O inferno, parte de sua obra-prima A divina Comédia.
¹Byroniana: o que segue a linha de pensamento do poeta inglês Lord Byron, ou seja, uma literatura caracterizada pelo egocentrismo, narcisismo, pessimismo, angústia e, por vezes, pelo satanismo.
Referências:
ALVES, Castro. Ao romper d’alva. In: Os escravos. São Paulo: Martins, 1972.
ALVES, Castro. Vozes da África. In: Poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1977.
GUINSBURG, Jacob. (Org.) O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1978.