Normalmente desprestigiada, a literatura brasileira tem obras poderosas como Casa de Pensão, Aluísio de Azevedo.
A literatura clássica brasileira costuma chegar até nós atravessada secamente pela garganta nos anos escolares básicos. Fragilmente contextualizada e ensinada por meio de fórmulas dirigidas a partir de certas escolas literárias e sua relação no espaço-tempo, acaba desprestigiada em meio ao turbilhão de emoções disponíveis nos best-sellers ficcionais modernos. O resultado é o inverso àquele que se pretende: os clássicos acabam rotulados como panfletos obrigatórios destinados a exames de mérito duvidoso. Depois do “período compulsório” são largados no canto, desprestigiados em meio a livros que só pela estética inebriante já impõem muito mais respeito que aquelas capas congêneres dos clássicos, cujas histórias se apertam no diminuto espaço de formatação com o objetivo de comprimir até o limite o número de páginas (para torná-lo mais palatável a leitores cada vez mais voltados a plataformas mais dinâmicas?).
Há um mundo a se descobrir nesse universo. Por exemplo: Casa de Pensão, romance escrito por Aluísio Azevedo e publicado em 1884, descreve as turbulências e alegrias do jovem maranhense Amâncio, filho único de uma família abastada de São Luís, e que, ao migrar sozinho para o Rio de Janeiro, faz o mesmo percurso que inúmeros outros jovens de famílias ricas do Brasil do século XIX (quando não iam para a Europa), em busca de oportunidades educacionais, mas também de um modo de vida mais prazeroso e livre. O jovem, considerando-se na sua terra, “infeliz, sacrificado nas suas aspirações, no seu ideal” (p. 29), aproxima-se dos desejos da juventude do nosso século e de suas insatisfações, questionamentos e necessidades de conhecer o mundo que se abre diante da maturidade.
A primeira ilusão de Amâncio é típica da imaginação excessiva. Em São Luís, morando a milhares de quilômetros da capital nacional, ele tinha para com o Rio uma imagem absolutamente ideal, fantasiosa, afigurando-lhe uma cidade onde ele iria desprender-se a “correr as suas aventuras, sem fazer escândalo como no diabo da província” (p. 17). O seu espírito “pedia uma grande cidade, velha, cheia de ruas tenebrosas, cheia de mistérios, de hotéis, de casas de jogo, de lugares suspeitos e de mulheres caprichosas” (p. 17). Buscava uma vida regada de prazeres carnais e de entretenimento. Fora encaminhado à capital para estudar, mas os estudos ocupariam o plano secundário diante dos prazeres urbanos a serem descortinados. A medicina, curso escolhido por ele, era apenas uma quinquilharia social para acumular o título de “Doutor”. Da ilusão à realidade. Ao chegar ao Rio, Amâncio foi recebido pelo amigo do seu pai, Campos, que apesar de excelente anfitrião, impunha limites à liberdade noturna do jovem. É num almoço no Hotel dos Príncipes, na ocasião em que reencontrou um amigo dos tempos de província, o Paiva, que ele é apresentado ao astuto João Coqueiro, que lhe sugere como nova moradia a casa de pensão que dirige em companhia da mulher, Mme. Brizard.
A partir de então, o grosso da narrativa se concentrará nos esforços de Coqueiro para aproximar Amâncio de sua irmã, Amélia, fiando a aproximação entre os dois a partir de conchavos e arranjos construídos impiedosamente.
A polissemia é enaltecida por Rubem Fonseca como uma das qualidades mais ricas da literatura. Quer dizer, a capacidade dos leitores de recriarem aquilo que se lê, vendo as coisas de modo diferente, único. Casa de Pensão, nesse sentido, é um livro fascinante por fornecer uma atmosfera historicamente particular do Rio de Janeiro e de uma compreensão do autor sobre o povo da sua época. A capital brasileira com seus conchavos, grandes bailes, gente gananciosa e de ricos e pobres convivendo no tecido social da cidade em formação. O Rio dos seus hotéis, restaurantes, do Largo do Machado, da suntuosa rua do Ouvidor. Tudo isso desperta a mente para um tempo que vai se construindo e reconstruindo repleto de sensações.
Azevedo, como naturalista, evidenciava o meio social como articulador do destino humano. Outras de suas obras, como O Cortiço, também terão esse viés determinista, que longe de empobrecer a obra, forja uma visão impactante, mas nem por isso infiel à natureza do indivíduo. Casa de Pensão, portanto, longe de superado pelo tempo, apresenta um mundo às vezes longe, às vezes perto do nosso. A cultura tem essa característica trans-histórica, atravessando gerações e gerações. Os clássicos, para muitos peças de museu, guardam intensas reminiscências que, ligando tempos históricos distintos, não estão tão longe de nós assim.