Em O professor, Cristovão Tezza nos mostra enredos na criação de uma vida, nos (sub)entendidos de uma linguagem em mutação e uma personagem professora e aluna de si mesma.
“O que eu tenho mesmo a lembrar?” (p. 16)
Me lembro de ter lido muitas menções a Cristovão Tezza em 2010, quando os jornais me eram companhias mais frequentes do que os livros. Engatinhava na descoberta da produção literária do Paraná, uma porção de livros e autores citados nos cadernos culturais eram apenas nomes, então desconhecidos para mim. Pausei as leituras noticiosas e fui atrás da fonte, querendo realmente saber sobre o que tanto se falava. E me deparei com O filho eterno, uma obra fortíssima por seu tema e linguagem, e entendi (assim julguei) as citações feitas – prêmios Brasil afora e traduções então planejadas.
Um erro emocional (2010), Beatriz (2011), Um operário em férias (2012), O espírito da prosa (2013) foram lançados desde então, registros de faces múltiplas da produção de Tezza. Beatriz e Operário são livros de contos e crônicas, Espírito é (algo perto de) uma autobiografia literária impiedosa, Erro foi chamado de novela, romance “menor” e outros termos peculiares. E agora temos O professor. Creio ter sido uma aposta alta do autor — ele já tinha mencionado o título, então provisório e depois oficializado, em eventos literários e entrevistas antes da publicação —, ele contava mas ao mesmo tempo nada dizia sobre o novo escrito.
“Pois bem, eu vou dizer – e a ideia lhe deu uma euforia, como quem descobre a chave de sua vida, um momento de uma feliz palpitação, era isso que eu estava buscando para mim mesmo” (p. 18)
O professor é a história de Eliseu da Motta e Silva, professor doutor de filologia romântica. Ele está em sua casa, se ajeitando mentalmente para uma ocasião única – homenageado na faculdade onde trabalha, se vê na cata de palavras para o discurso a ser feito para estudantes e docentes. Acompanhamos a (des)construção de seu raciocínio, serão só alguns minutos, mas… ele pode contar uma história neles. Sua mente viaja: a opção pela filologia, esta disciplina abandonada por tantos desatentos e abraçada apaixonadamente por Eliseu; a alegria e surpresa por receber a homenagem, logo ele que nunca foi popular (sem ser populista. Se acha meio louco, os loucos atraem alguma simpatia, teria sido isso? Não, esta ideia não serve).
O susto – encarar uma plateia de mudez cronometrada, ele sempre impôs um fio de temor aos estudantes, e em breve estaria perto e longe deles naquela posição de “homenageado”; a passagem onde a história pessoal e a nacional são carros na mesma rua, sem saber a própria direção, afinal, o que aconteceu em 1984, a grande greve na faculdade? Não, a personagem rememora, foi o ano das Diretas Já, quem era o país, quem era Heliseu? Ele sabe, está se recompondo, a ocasião o tira de suas lógicas e o joga na dita realidade onde não há ordem. Talvez a dificuldade em escolher apenas um momento a contar, dentre os quase setenta e um anos vividos? As dúvidas tiveram seu breve espaço, no final tudo não passa de um conjunto de reações químicas.
Como foi quando Therèze entrou na sala. Nem era aluna de Heliseu, entrou na sala dele por engano, sendo observada como intrusa por ele e por uma classe inteira em mútuo estranhamento; mas depois de pega em flagrante não se preocupou em se explicar. Acabou ficando – com o professor mais do que com a matéria.
Heliseu conta do progressivo envolvimento com a estudante, e também da queda livre do relacionamento com a esposa e o filho. Ligados entre si não pelo ritmo, mas pela sensação de não se sentir aceito. A família para quem ele se tornou menos que um vulto, o filho que sempre foi mais filho dela, e a forma nada pacífica como ela resolveu todos os problemas da própria vida, deixando a Heliseu um idioma incógnito para decifrar.
Se imagina em frente à plateia de alunos e docentes – estão ali para o ouvir discursar, em possível ansiedade mista em saber como ele se sairá nesta homenagem e algum desejo (in)discreto de ouvir o final da pronúncia do doutor e cair fora dali.
“E Duarte Nunes de Leão, orgulhoso da sua pátria, no ponto mais alto dela, era alguém que, no melhor espírito mercantilista, e ao mesmo tempo popular, dizia que as palavras são como moedas, só valem as de valor corrente” (p. 51)
São correntes as palavras do doutor Heliseu? Ele se pergunta o que contar, talvez a vida pessoal em favor da acadêmica, pode ser engraçado. Alguma anedota qualquer, talvez despertar risos, se as lembranças de sensações ambíguas o pararem de assombrar. Breves parágrafos bastam, nada demais. E como chegar neles.
E na mente do protagonista: este ser que fala de si em terceira ou primeira pessoas, conta sem revelar, individualidade em confronto consigo e com o alheio, os fatos e memórias nos subterrâneos da busca pela exatidão. Em O professor, Cristovão Tezza nos mostra enredos na criação de uma vida, nos (sub)entendidos de uma linguagem em mutação e uma personagem professora e aluna de si mesma.
O Professor
Cristovão Tezza
Record
240p.
2014