Entenda o que é a ABLC: Academia Brasileira de Letras do Cárcere, sua função e sua importância para a sociedade.
Tudo começou com um convite
Quando, no último mês de maio, recebi convite do ex-desembargador e jurista Siro Darlan para integrar a recentemente fundada Academia Brasileira de Letras do Cárcere (ABLC), confesso que estranhei. Em primeiro lugar, porque não sou dado a louvar academias de modo geral, pela ideia, que me parece intrínseca ao próprio conceito, de distinção e certa diferenciação, quando a literatura, em minha opinião, só pode sobreviver em meio ao povo como o peixe na água, para usar uma velha analogia. E, em segundo lugar, porque, embora tenha passado sete meses encarcerado em diferentes presídios de segurança máxima em razão de minha participação nas manifestações populares de 2013 e 2014, e dessa experiência tenha nascido meu livro de estreia, “A pequena prisão” (n-1, 2017), nunca me senti um típico porta-voz daquela população marginalizada com quem convivi no fundo das celas ou nos pátios desolados, grande parte da qual vive uma prisão perpétua intercalada, desde a infância, entre abrigos, instituições socioeducativas, delegacias e penitenciárias, sem acesso a instrução ou emprego formal, o que não é o meu caso. Apenas fiz um depoimento honesto sobre o que vi, e tive a sorte de que ele tenha sido considerado digno de nota por pessoas sensíveis e estudiosos dedicados, preocupados com os rumos de uma sociedade que ocupa o status de terceira maior população carcerária do mundo. Mas, seja como for, há convites e pessoas para as quais não se pode dizer não, e fui eu tomar parte na segunda sessão da ABL-Cárcere.
A descoberta de uma iniciativa cultural
Então, me dei conta que se trata de uma das mais originais iniciativas no campo cultural, particularmente literário, ocorridas no Brasil nos últimos tempos. Os acadêmicos não são, nem de longe, tipos aristocráticos: são homens e mulheres dos estratos populares, que têm em comum o fato de terem vivenciado, alguns longamente, a experiência do encarceramento e escrito, em prosa ou poesia, sobre a mesma. Amanda, Gih, Sagat, Edilbeto – para citar apenas aqueles com os quais pude conversar – me lembraram mesmo as pessoas com quem dividi quentinhas ou solavancos em viaturas, com a diferença, essencial, das roupas e cabelos variados, e de terem descoberto o mesmo truque que eu, há anos atrás: não basta viver, é preciso contar. Hoje, também partilhamos a sede de trabalhar e viver de/com cultura, forma de vencer os muros invisíveis que nos aprisionam a todos aqui, nessa estranha sociedade que existe do lado de fora. Afinal, em tempos de capitalismo senil, desemprego galopante e hipervigilância, é cada vez mais incerta a distinção entre prisão e liberdade. Pode-se dizer, sob múltiplas perspectivas, que é a própria sociedade quem precisa ser ressocializada. Seja como for, assinar uma obra com um testemunho de prisão é reconhecer uma cicatriz que a maioria das pessoas busca esconder, e transformar um estigma em grito de guerra. Um ato de coragem, e até de subversão, mesmo, na acepção da palavra.
Voz para os prisioneiros
Alguns veículos de imprensa noticiaram a fundação da ABL-Cárcere de modo no mínimo enviesado. Ao invés do aspecto cultural, houve quem preferisse destacar o fato de que Márcio Nepomuceno, condenado a longas penas por tráfico de drogas, seja um dos seus componentes. O x da questão é: se não há pena de banimento no Brasil, e se a jurisprudência já prevê estudo e leitura para fins de remição de pena, o que impede uma pessoa encarcerada, acusada seja lá do que for, de refletir e produzir conhecimento sobre sua própria condição? Que a sociedade faça o devido crivo, de acordo com as opiniões professadas – mas de maneira alguma se pode impedir alguém, já privado do bem humano fundamental da liberdade, de se expressar. Estas restrições moralistas, aliás, que costumam sair da boca de pessoas que relativizam as centenas de milhares de mortes sob a pandemia, ou o massacre cotidiano da juventude pobre e negra nas periferias, sempre me remetem à máxima atribuída a Chaplin, que dizia: Quem mata um homem é chamado de assassino, quem mata milhares é chamado de herói…
Embora a Lei de Execuções Penais diga que uma pessoa encarcerada conserva todos os direitos de uma pessoa livre (exceto, naturalmente, o de ir e vir), e estabeleça que deva lhe ser assegurado acesso a “educação, cultura, atividades intelectuais e o acesso a livros e bibliotecas”, bem como, desde a Recomendação 44 do Conselho Nacional de Justiça de 2013, a leitura seja considerada instrumento para remição de pena, o acesso a este conjunto de garantias não ocorre na prática. A imensa maioria dos presídios brasileiros não possuem bibliotecas (na verdade, possuem bem menos que o mínimo para a sobrevivência humana digna de modo geral, incluídas questões ainda mais básicas como alimentação e vestuário). Dentre os que possuem livros, ou permitem que eles entrem nas unidades, vários aplicam uma discricionária, e ilegal, censura prévia: literatura política, ou mesmo clássicos, com teor crítico e social, costumam ser proibidos, como revelou excelente matéria do jornalista Leandro Aguiar para a Agência Pública. Referindo-se ao sistema penitenciário de Minas Gerais, ele constatou, ao entrevistar detentos, familiares e funcionários, que “só entra Bíblia ou autoajuda”. Isso, certamente, não é exclusividade dos mineiros, pois eu mesmo vivi esta realidade na pele: meus advogados e eu precisamos negociar por três meses meu acesso a livros trazidos de fora, já que nenhuma das unidades prisionais em que estive possuíam bibliotecas. Quando autorizados, foi-me imposta uma condição: só entraria outro, quando o último fosse devolvido. O medo era claro, qual seja, que eu fizesse circular literatura crítica –ou simplesmente literatura – no interior da masmorra. O que, por sua vez, nos dá uma pista bastante significativa da potência das ideias impressas e do temor que elas inspiram (aliás, sempre inspiraram) em qualquer ambiente obscurantista.
Conclusão: uma grande iniciativa
Deste modo, se a Academia Brasileira de Letras do Cárcere cumprir o seu declarado propósito de “oferecer uma plataforma para que esses autores expressem suas vozes e compartilhem suas histórias, contribuindo assim para a diversidade e a riqueza da literatura nacional”, abrindo uma brecha no ciclo perverso de silenciamento, opressão e invisibilidade de nossos “condenados da terra”, como diria Frantz Fannon, ela já terá sido uma grande iniciativa.
Créditos HL
Esse texto é de Igor Mendes da Silva. Ele teve revisão e edição de Nicole Ayres, editora assistente do Homo Literatus.