Mulheres de Cinzas, romance histórico do moçambicano Mia Couto, é o começo da trilogia “As areias do Imperador”
“Alguns de nós, humanos, temos esse mesmo destino: falecidos por dentro, e apenas mantidos pela parecença com os vivos que já fomos”. (p.87)
Se os corações dos personagens ainda batem podemos entender que vivem; entender se eles sentem-se vivos é complexo demais. E talvez até perigoso, sob a ótica deles: qualquer ideia diferente da sobrevivência cotidiana cede a ela de imediato, tamanha urgência de se levantar da poeira – e isto as Mulheres de Cinzas, romance de Mia Couto, fazem com a mesma espontaneidade com que respiram.
De início, somos apresentados a duas visões do mundo. Uma delas é a da jovem Imani, cujo nome lhe parece uma interrogação e nos dá pistas de como é parte de sua vida. Ela conta que após uma guerra acontecida em 1889 a terra de Nkokolani, onde morava, conheceu a paz, mas durou pouco tempo. Seis anos após a guerra soldados do imperador Ngungunyane voltaram a invadir o local, ainda que nem sempre suas investidas fossem o suficiente para intimidar os habitantes – uma cena envolvendo um parto logo no início da narrativa explica é o melhor exemplo de que havia quem respondesse às armas de metal com munição vinda do próprio solo.
Ao mesmo tempo em que Imani nos conta a sua história ela fala de onde mora, das terras ao redor de Moçambique e dos costumes moldados com o tempo, embora ela nos dê a impressão de estranhamento, como se não tivese motivo para contar isso. E também parece não se sentir à vontade com o próprio corpo, do qual guarda quase tantas dúvidas quanto de sua infante vida, buscando nos gestos e falas (e silêncios) alheios um mínimo que a faça se sentir parte do tão pouco que entende por comunidade.
A outra visão do mundo nos é apresentada pelas páginas do sargento Germano de Melo, endereçadas a Vossa Excelência Senhor Conselheiro José d’Almeida. Ele é designado para comandar um posto em Nkokolani a mando dos exércitos portugueses, cujos interesses representa, e deve relatar o avanço das tropas no terreno hostil – missão em que Germano falha miseravelmente desde a primeira carta.
Ele parece um típico funcionário submisso e às vezes intimidado pelo poder, quase ciente de ser apenas um peão descartável – a mesma maneira como ele vê os nativos. Há uma carta em que diz não saber se a submissão das autoridades de seu país o incomoda mais do que a arrogância de outros poderes; e sua compreensão dos costumes locais parece uma busca para saber como derrotar ‘essa gente’ de dentro para fora. Mas no início da sua parte do livro fica claro o quanto Germano é inseguro, ingênuo de buscar amparo nos poderes que representa, o quão sua conduta desvia do que o exército gostaria de receber, tanto pelos relatos sobre o avanço das tropas quanto pela exposição de si mesmo. Justo pelas falhas esse personagem é fundamental, principalmente quando conhece bem de perto a realidade que foi mandado para combater – ele sente o bastante para ficar desorientado em relação ao que conhecia.
Muitas características desse livro foram usadas em obras anteriores de Mia Couto. A mudança de voz narrativa pode ser herança de Terra Sonâmbula e O Outro Pé da Sereia, ainda mais no caso deste que também combina ficção e realidade; a linguagem poética de toda sua produção ficcional, em que cada palavra carrega um universo em si mesma. E os muitos questionamentos de identidade, seja no plano individual com seus personagens que vivem a se perguntar o que fazem ali, ou no plano geral, onde se pode avaliar um pouco do que as situações representadas foram e se tornaram, sem que existam juízos absolutos ou tom de panfletagem quando o recorte da realidade vira tema.
A novidade de Mulheres de Cinzas é que o livro compõe uma trilogia, batizada “As Areias do Imperador”. Se uma história ‘fechada’ em si permite dúzias de interpretações, este início é um convite para quantas possibilidades teremos após o término da saga – e é muito sugestivo termos justo ‘areias’ e ‘cinzas’ nos nomes.