Socorro Acioli, vencedora do Jabuti e autora d’A Cabeça do Santo, foi aluna de Gabriel García Marquez durante a última oficina de roteiro que ele ministrou em Cuba. Ao voltar para o Brasil, a escritora promoveu o seu próprio curso de escrita criativa, auxiliando escritores iniciantes a escreverem seus livros.
De julho a outubro de 2013, frequentei os dois módulos do curso de Escrita Criativa, ministrados pela Socorro Acioli, em Fortaleza. Pra quem não sabe, ela é a autora d’A Cabeça do Santo, livro abençoado por Garcia Marquez desde a fase embrionária, quando era um esboço arriscado num e-mail insistente enviado pra Cuba, como a própria autora contou pros alunos, naquele dia em que a minha descrença e as minhas dúvidas, minha aparente falta de identificação com os colegas e a constatação do caos que era a minha cabeça foram dissolvidos por uma espécie de mágica invisível. Antes do curso, eu não sabia quem era Socorro Acioli e nunca tinha lido uma linha sequer escrita por ela. Mas aquela mulher estava realizando uma espécie de milagre: oferecendo estímulo para as mentes famintas dos desavisados que sonhavam em ser escritores e esqueciam que Fortaleza era terra de grande história literária, mas nenhuma tradição. Numa metrópole árida de escrita, de sonhos e de cursos voltados à literatura, aquela personagem era um tanto estranha. Com tantos livros na memória, eu sabia que era o tipo de sujeito que dava impulso à trama.
No primeiro dia, reviravolta inesperada: dezenas de assentos ocupados, gente que queria escrever—aquela espécie que eu achava que se escondia sob o solo numa festa pra qual eu não conseguira convite—, gente que tinha mundos por dentro, gente que apostava numa sorte tão improvável em terra tupiniquim, terra de quem não lê, de quem não escreve. Tudo embaralhado e dissolvido numa confusão maluca, uma coisa cheia de olhos e braços, canetas, anotações, castelos de ar. Algo estava prestes a mudar; era um evento. Depois do burburinho inicial, Socorro começou as aulas. Havia algo de pueril nela, um quê meio indivisível que eu não conseguia decifrar, porque não a conhecia. Mais tarde, eu entenderia o que era. Por ora, só tentava chamar um pouco da sua atenção, admirável porque era escritora, era o que eu queria ser, e conseguia ser isso aqui, quando todas as minhas próprias expectativas eram negativas. Eu não era a única a tentar, no entanto. Por todos os lados, apareciam pessoas que a conheciam, mais especialmente, pessoas que ela já havia lido. Eu queria muito que ela me lesse. A cercava como uma folha escrita, destacando minhas letras em negrito, mas não parecia funcionar. Queria, no fundo, que alguém soubesse que eu queria. Eu queria escrever com toda a certeza do mundo, e faria o esforço necessário.
Desde o começo, Socorro deixou claro que não havia regras no que ela professava. O exercício da escrita, apesar das técnicas existentes e válidas, não era uma ciência exata, e cada estilo revelava um novo mundo de possibilidades produtivas de acordo com a mente de quem o escrevia. Estava apresentando uma forma de nos organizarmos melhor — conhecia bem o caos da cabeça de um escritor. Com o tempo, quis saber dos nossos projetos: ouviu, palpitou, teceu tramas à parte dos nossos próprios enredos, voando com os elementos mais distintos. Sugeriu temas interessantes, como os mistérios mais esquecidos de uma cidade antiga e decadente. E nos presenteou com um pouquinho da sua fé enorme, inundando-nos de inspiração sonhadora.
Mas qual a principal lição que a Socorro me deu? Quando finalmente pousou os olhos sobre as minhas linhas, ela compartilhou um pouco da sua mágica. Duvido que ela tenha noção do quanto seu estímulo foi importante. Talvez tenha alguma pista pela maneira apressada com que terminei, ao final de setembro, o meu primeiro livro, já abençoado por ela, que fez o mesmo que García Marquez sem saber. Se hoje corro atrás de editoras e escrevo todos os dias, é porque aquela primeira centelha terminada teve muito do seu feitiço. No intervalo entre um módulo e outro, agosto do ano passado, eu descobri, numa tarde sonolenta de domingo, a história que eu deveria escrever. E foi um milagre. Eu senti. Stória, stória, como no livro de Socorro.
Li A Cabeça do Santo em uma tarde, um pouco recheada de preconceito, sem esperar muita coisa por me sentir tão diferente, tão distante daquele mundo tão próximo do sertão cearense. Não nasci no Ceará, mas também não sou de outra terra; e tampouco desta. O mundo externo sempre me foi uma coisa esquisita e pequena com a qual o universo gigantesco que mal cabia dentro de mim não sabia discorrer. Eu não tenho orgulho ou pertencimento a nenhuma cidade, mas o livro de Socorro foi, pouco a pouco, dissolvendo a minha descrença com aquela mágica que lhe é peculiar. Nos eventos fantásticos de Candeia, a fé, a magia e o amor revelaram o mais intrínseco que eu pude captar em Socorro, na mulher que acreditou que seria aluna de Garcia Marquez, que acreditou na própria insistência, que acreditou no sonho e na literatura, que também são amor: o milagre dela era aquela coisa pueril— mágica, força, a força estranha (parafraseando seu personagem Aécio) que chega e, pá! A gente sente.
Força tão grande que, ao final do curso, Socorro correu para pegar o seu Jabuti, publicou A Cabeça do Santo, esgotado na primeira semana nas livrarias daqui, concedeu entrevistas para os maiores jornais do Brasil, tornou-se doutora em literatura e ministra mais um curso de escrita, agora no Rio de Janeiro. Certamente é apenas o começo da história.