Ônibus levam pessoas, mas também histórias. Não sei vocês, mas eu tenho muitas. Quem é meu amigo no Facebook e recebe, por consequência, minhas atualizações de status em sua timeline, conhece alguns dos episódios engraçados e, no mínimo, estranhos que presencio, sendo uns de pequeno outros de grande porte, mas de irrefutáveis importância. O que gostaria de narrar hoje só está possível nessa url devido ao seu cunho literário. Vamos lá:
Morando eu um pouco afastado do centro da cidade, tenho que pegar dois ônibus que me levam do terminal central até uma esquina antes da minha casa; o primeiro dos coletivos percorre um grande caminho até chegar em um outro terminal, d’onde vou de encontro ao transporte de número dois. Contudo, é no primeiro caminho, geralmente, que as coisas acontecem – não foi diferente desta vez.
Era uma quarta-feira, meio de uma semana sem qualquer expectativa, como se eu vivesse somente pelo prazer de riscar os dias no calendário, como presidiário da rotina (e quem não é?). O tempo estava insosso, sem graça, broxante. Durante toda a semana foi assim. Já era noite e as nuvens cinza que cobriam o céu até as seis, agora maquilavam-se de preto e, exibidas, tomavam à frente das estrelas. Eu voltava para casa depois de um dia de trabalho devastador. Havia pregado os olhos na tela de manhã cedo e piscara somente quando bateu o horário, fazendo uma pequena pausa para almoçar e respirar.
Após o trabalho, ainda tive de ir à faculdade resolver algumas coisas e de lá só saí com a cabeça pulsando, querendo expelir meu cérebro pra fora com uma cuspida. Os olhos encheram-se de tranquilidade quando avisei o ônibus que me levaria à rota do caminho de casa e embarquei nele com uma saudade absurda da cama. Comigo à mão tinha somente um livro, de Paulo Ghiraldelli Jr., História Essencial da Filosofia (Volume I), qual indico e gosto muito, por apresentar um mapeamento da cronologia filosófica durante os anos e séculos.
No lugar provavelmente menos confortável do ônibus, qual é de meu costume ter a sorte de encontrar, abri o livro revezando as mãos entre o escrito e o pilar de ferro que me mantinha em pé sob os solavancos e as curvas da estrada. A leitura estava difícil, sem qualquer condenação ao livro, mas cansaço não é um bom produto quando multiplicado por três tagarelas, principalmente quando estes percorrem a língua pelo tripé: cerveja, mulher e futebol.
Quando fui avistado por um deles (mais especificamente o do meio, que tinha os cabelos sobre as orelhas, com o boné de aba longa e curvada prensando a cabeça), no entanto, o ritmo da conversa foi outro. Sem perceberem que eu os ouvia e estudava o melhor momento de lançar o meu pior olhar de desgosto, miraram meu livro e a conversa passou a seguir outro rumo. “Carai, véi, quanto tempo faz que eu não leio um livro!?”, “Puta merda! Nem me fala.” E dali para os cinco minutos seguintes se sucederam lamúrias e torturas psicológicas entre eles, um mais arrependido que o outro por estarem há meses sem folhear uma mísera página de livro.
Já chegávamos ao terminal, sem qualquer expectativa daquela masturbação sofrida acabar, quando alguns títulos foram surgindo. “E cinquenta tons de cinza?” Gargalharam os três. “Cinquenta tons de cinza é livro de mulher safada”. “Já leu, foi?” De novo risos. “Li nada, o meu negócio é Assassins Creed”. “Meu caralho, nem me fala, tô louco pra ler esse”. “Eu tenho ele! Comprei ano passado!”. “Porra, bicho, tu me empresta?”. “Depois pra mim, hein!”. “Beleza. Empresto pra vocês sim.”
O ônibus chegou ao terminal e eu tomei então o segundo. Evidentemente não consegui ler um parágrafo do meu livro naquela noite. O máximo que deu pra fazer foi olhar a sua capa e esboçar um sorriso para o homem que está sentado à pedra com a mão no queixo refletindo, como quem diz “Obrigado”.