O retorno do gigante

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Encerrando um hiato de dez anos sem um romance inédito, Kazuo Ishiguro lança sua primeira aventura fantástica e divide opiniões.

Copyright Sarah Lee - Novelist Kazu Ishiguro, shot in the Cotswolds.
Kazuo Ishiguro (Foto de Sarah Lee)

Publicado no original em março desse ano, O gigante enterrado vem recebendo críticas mistas na imprensa internacional. Há quem elogie o fato do autor sair de sua zona de conforto para experimentar com uma fantasia medieval. Outros, no entanto, reclamam da abordagem rasa de lutas e seres mitológicos – dois pilares do gênero – e questionam o ritmo lento do livro.

O próprio escritor, durante o festival literário de Cheltenham, admitiu ter tido dificuldades com a narrativa. Ao ser questionado sobre a demora em concluir a história, ele explicou que estava satisfeito com seu ritmo, produzindo cerca de oitenta páginas por ano. Porém, com a obra já pela metade, Ishiguro apresentou os originais para a esposa, e recebeu o seguinte veredito: “Isso não será suficiente. Não há como continuar da forma que está. Você terá de recomeçar do zero”. Na mesma entrevista, ele disse que, apesar de sofrer com o comentário, acabou concordando com a mulher. Colocou o manuscrito de lado, e aos poucos, reescreveu todo o conteúdo, chegando a uma versão final com protagonistas inesperados.

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O gigante enterrado (Companhia das Letras, 2015)

Nessa história, quem parte em uma aventura é um casal de idosos, Axl e Beatrice, decididos a visitarem o único filho, há tempos morador de uma aldeia distante. Ao menos, é o que eles imaginam ter acontecido. Ninguém tem certeza de nada naquela região, onde uma bruma desconhecida leva as memórias das pessoas embora, deixando apenas vislumbres do passado. Em seu caminho, o par encontra guerreiros, monges e criaturas mágicas, e vai além de limites físicos e crenças em uma batalha pelo retorno da lembrança. Como dito por Axl:

“Não há nada a temer. As nossas lembranças não sumiram para sempre, elas só estão escondidas em algum lugar por causa dessa maldita névoa. Mas nós vamos encontrá-las de novo, uma por uma se for necessário. Não é por isso que estamos fazendo essa viagem? Quando nosso filho estiver diante dos nossos olhos, muitas coisas com certeza vão começar a voltar à nossa memória (p.60).”

A investigação da memória é sem dúvida, a questão central do livro. Se no premiado Não me deixe jamais Ishiguro usa a ficção científica para explorar o existencialismo, em O gigante enterrado ele aproveita a fantasia para abordar, de maneira lúdica, a forma como optamos por esquecer alguns momentos de dor. O tema do esquecimento foi, inclusive, o ponto de partida romance. Em uma entrevista concedida ao New York Times em fevereiro, o autor revelou que há mais de quinze anos desejava escrever sobre memória coletiva – mais precisamente, sobre como as sociedades maculam os registros do passado, para conseguirem seguir em frente após as atrocidades vividas. Ishiguro elucidou, ainda, que a narrativa poderia se passar na França após a Segunda Guerra, ou na Bósnia atual. No entanto, o autor temia ver seu livro categorizado como obra política quando, na verdade, sua intenção era fazer uma investigação mais íntima do ser humano.

De fato, quem espera uma fantasia-padrão é pego de surpresa por uma narrativa muito mais focada em diálogos delicados do que na ação. No entanto, se a fórmula ousada dividiu a crítica, certamente ela tem agradado os leitores: O gigante está em diversas listas de bestsellers pelo mundo – inclusive no Brasil. Lançado por aqui em junho, pela Companhia das Letras, o livro segue sem interrupção entre os dez mais vendidos na categoria “ficção fantástica”. O estrondoso sucesso de vendas já até garantiu a aquisição dos direitos para o cinema: a adaptação ficará por conta de Scott Rudin, o premiado produtor de Onde os francos não têm vez e O Grande Hotel Budapeste.

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