O riso e o grotesco da Orgia dos Duendes

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O riso e o grotesco da Orgia dos Duendes
Bernardo Guimarães

No poema “A orgia dos Duendes”, Bernardo Guimarães descreve criaturas folclóricas em um ritual antropofágico.

Bernardo Guimarães

Um autor romântico

Bernardo Guimarães, autor do Romantismo brasileiro, ficou popular em seu tempo pelas obras A Escrava Isaura, O seminarista e outros romances. Porém, embora sua produção em prosa seja mais popular, Guimarães foi profícuo também no gênero lírico, escrevendo poesia satírica, com nuances grotescas.

É o caso do reputado “A orgia dos Duendes”, longo poema narrativo onde o poeta descreve uma grande festa na floresta, com criaturas horrendas e criminosas, que discorrem sobre suas maldades enquanto cantam e dançam em um ritual.

Um poema grotesco

O poema começa com a chegada de uma velha rainha ao jirau, convocando com seu canto outras criaturas igualmente grotescas, de nomes animalescos e aparência disforme, todos retirados da imaginação endiabrada do poeta e do folclore brasileiro. Ali, Lobisome, Taturana, Getirana, Mamagava e outros começam seu ritual antropofágico e realizam uma espécie de orgia.

Meia-noite soou na floresta
No relógio de sino de pau;
E a velhinha, rainha da festa,
Se assentou sobre o grande jirau.
[…]
“Vinde, ó filhas do oco do pau,
Lagartixas do rabo vermelho,
Vinde, vinde tocar marimbau,
Que hoje é festa de grande aparelho.
Raparigas do monte das cobras,
Que fazeis lá no fundo da brenha?
Do sepulcro trazei-me as abobras,
E do inferno os meus feixes de lenha.

As criaturas folclóricas

Em seguida, cada um deles apresenta em versos os atos que cometeram, que vão do incesto ao infanticídio, com grande sorte de requintes da maior crueldade, devassidão e heresias.

TATURANA
Dos prazeres de amor as primícias,
De meu pai entre os braços gozei;
E de amor as extremas delícias
Deu-me um filho, que dele gerei.
[…]
GETIRANA
Por conselhos de um cônego abade
Dous maridos na cova soquei;
E depois por amores de um frade
Ao suplício o abade arrastei.
[…]
GALO-PRETO
Como frade de um santo convento
Este gordo toutiço criei;
E de lindas donzelas um cento
No altar da luxúria imolei.
[…]
ESQUELETO
Por fazer aos mortais crua guerra
Mil fogueiras no mundo ateei;
Quantos vivos queimei sobre a terra,
Já eu mesmo contá-los não sei.
[…]
MULA-SEM-CABEÇA
Por um bispo eu morria de amores,
Que afinal meus extremos pagou;
Meu marido, fervendo em furores
De ciúmes, o bispo matou.
Do consórcio enjoei-me dos laços,
E ansiosa quis vê-los quebrados,
Meu marido piquei em pedaços,
E depois o comi aos bocados.
[…]
CROCODILO
Eu fui papa; e aos meus inimigos
Para o inferno mandei c’um aceno;
E também por servir aos amigos
té nas hóstias botava veneno.
[…]
LOBISOME
[…]
Com o sangue e suor de meus povos
Diverti-me e criei esta pança,
Para enfim, urros dando e corcovos,
Vir ao demo servir de pitança.

Binomia

Terminada a orgia infernal, trazendo o alvorecer do dia, chega passeando no bosque uma bela donzela, restituindo a ordem da natureza, que já está quase esquecida do bacanal que ali ocorreu. Não há resquícios do assombro da noite anterior, todo grotesco e bizarrice é substituído pelo canto dos pássaros e pela pureza da virgem que agora caminha tranquilamente.

Essa amálgama entre o grotesco do bacanal e o sublime da donzela é o que Álvares de Azevedo chamou de binomia no prefácio de Lira dos Vinte Anos, obra na qual traz duas partes claramente opostas: Ariel e Calibã.

A primeira, Ariel, simboliza o amor puro, idealizado, sentimentalista, mas também melancólico: como “uma lira sem cordas: uma primavera, mas sem flores”. A segunda, Calibã, representa o riso, a sátira, o mal e o carnal.

Assim, o poeta romântico estaria seguindo os passos de Victor Hugo, que argumentava pela junção desses elementos de modo que um alimente o outro. Nesse sentido, Álvares, Hugo e Guimarães deixam claro, desde o século XIX, que a arte da palavra se faz de contrastes.

Referências

AZEVEDO, A. Lira dos vinte anos. São Paulo: Editora Martin Claret, 2008.

HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. Tradução do Prefácio de Cromwell. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.

Créditos Homo Literatus

O texto acima é de autoria de Anderson Felix, colaborador fixo do Homo Literatus. A revisão é de Evandro Konkel. A edição é de Nicole Ayres (editora assistente do Homo Literatus).

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