O filósofo e escritor Albert Camus se debruçou na obra A Náusea, do também filósofo e escritor Jean-Paul Sartre, em um texto de 20 de outubro de 1938, e a comparou com as obras do Franz Kafka
Camus, então, começa afirmando que um romance nunca passa de uma filosofia posta em imagens. Em um bom romance, toda a filosofia passou pelas imagens. Mas basta que ela ultrapasse as personagens e a ação, que apareça como uma etiqueta sobre a obra, para que a intriga perca sua autenticidade e o romance, sua vida.
Entretanto, uma obra duradoura não pode deixar de lado o pensamento profundo. Esta fusão secreta da experiência com o pensamento, da vida com a reflexão sobre seu sentido, é o que faz o grande romancista (tal como se manifesta em um livro como A condição humana, por exemplo).
Trata-se hoje de um romance em que este equilíbrio é rompido, em que a teoria prejudica a vida. Tal coisa é bastante comum há algum tempo. Mas o que impressiona em A Náusea é que os dons emocionantes de romancista e os jogos da mente mais lúcida e mais cruel encontram-se ao mesmo tempo prodigalizados e jogados fora.
Tomados à parte, de fato, cada um dos capítulos dessa extravagante meditação atinge uma espécie de perfeição na amargura e na verdade. O romance desenha-se: pequeno porto do norte da França, burguesia de armadores que concilia a missa e a boa comida, restaurante onde o exercício de comer retoma aos olhos do narrador seu aspecto repugnante, tudo o que toca, enfim, ao lado mecânico da existência é traçado com uma mão segura em que a lucidez não dá lugar à esperança.
Do outro lado, as reflexões sobre o tempo, figurado nos passinhos sem futuro de uma velha senhora ao longo de uma rua estreita, são, separadas do resto, uma das ilustrações mais opressivas da filosofia da angústia, tal como é resumida pelo pensamento de Kierkegaard, de Chestov, de Jaspers ou de Heidegger. Assim, as duas faces deste romance, são igualmente convincentes. Mas, reunidas, na são uma obra de arte e a passagem de uma para outra é demasiado brusca, demasiado gratuita para que o leitor encontre a convicção profunda que é a arte do romance.
Em si, na verdade, o livro não se apresenta como um romance, e sim como um monólogo. Um homem julga sua vida e a partir dela julga a si mesmo. Quero dizer que analisa sua presença no mundo, o fato segundo o qual mexe seus dedos e come em horas fixas – e o que encontra no fundo do ato mais elementar é seu absurdo fundamental.
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Nas vidas mais bem preparadas, sempre acontece um momento em que o cenário desmorona. Por que isto e aquilo, esta mulher, esta profissão e esta fome de futuro? E, por fim, por que esta agitação para viver em pernas que vão apodrecer?
Este sentimento é comum em nós. Aliás, para a maioria dos homens, a chegada da hora do jantar, uma carta recebida, ou o sorriso de uma desconhecida bastam para fazê-los superar o problema. Mas para quem gosta de aprofundar as ideias, olhar esta ideia de frente torna a vida impossível. E viver julgando que isto é vão cria a angústia. De tanto viver remando contra a corrente, um desgosto, uma revolta toma conta de todo o ser, e a revolta do corpo chama-se náusea.
Estranho assunto, sem dúvida, e contudo o mais banal de todos. Sartre o leva até o fim com um vigor e uma segurança que marcam o que pode haver de cotidiano em um desgosto aparentemente tão sutil. Neste esforço, encontra-se o parentesco de Sartre com um autor que ninguém (salvo engano) citou a propósito de A Náusea : estou me referindo a Franz Kafka.
Mas a diferença é que diante do romance de Sartre, não sei que incômodo impede a adesão do leitor e o mantém no limiar do consentimento. Atribuo este fato, sem dúvida, ao desequilíbrio tão sensível entre o pensamento da obra e as imagens em que ele aparece. Mas talvez possamos pensar outra coisa. Isto porque o erro de uma certa literatura é acreditar que a vida é trágica porque é miserável.
Ela pode ser emocionante e magnífica, esta é sua tragédia. Sem a beleza, o amor ou o perigo, seria quase fácil viver. E o herói de Sartre talvez não tenha entendido o verdadeiro sentido de sua angústia quando insiste no que lhe é repugnante no homem, ao invés de fundar em algumas de suas grandezas os motivos para se desesperar.
Constatar o absurdo da vida não pode ser um fim, mas apenas um começo. Esta é uma verdade da qual partiram todos os grandes espíritos. Não é esta descoberta que interessa, e sim as conseqüências e as regras de ação que se tira dela. No final desta viagem para as fronteiras da inquietação, Sartre parece permitir uma esperança: a do criador que se liberta ao escrever.
Da dúvida primitiva, talvez surja um “Escrevo, logo sou”. E não podemos deixar de encontrar uma desproporção interessante entre esta esperança e a revolta que a fez nascer. Isto porque, afinal, quase todos os escritores sabem quanto sua obra não é nada diante de certos minutos. O objetivo de Sartre era descrever estes minutos. Por que não ter ido até o fim?
De resto, este é o primeiro romance de um escritor do qual podemos esperar tudo. Uma facilidade tão natural em manter-se nas extremidades do pensamento consciente, uma lucidez tão dolorosa, revelam dons sem limites. Isto basta para que gostemos de A Náusea como de um primeiro apelo de uma mente singular e vigorosa cujas obras e lições por vir aguardamos impacientemente.
Adendo: em 1964, agraciado com o Nobel de Literatura, Sartre recusou o prêmio – situação única na história literária. O caso se tornou um escândalo, que poderia ter sido evitado pela Academia Sueca, visto que Sartre teria descoberto antecipadamente que seu nome estava entre os indicados, e por isso enviou uma carta para a Academia avisando que recusaria o prêmio caso fosse o escolhido para recebê-lo; a carta, no entanto, só chegou à mão dos Acadêmicos responsáveis pela escolha do vencedor do prêmio, dias depois de Sartre ter sido escolhido para recebê-lo.
Por: Albert Camus. Alger républicain, 20 de outubro de 1938 – texto também encontrado em “A Inteligência e o Cadafalso”, de Camus.