Desde menino eu brincava com meus pais de formar palavras com as letras da placa do carro da frente
Estava com pressa! Peguei a pista esquerda da esquerda, quis passar. Na verdade, estava atrasado. Deveria chegar antes do ponto eletrônico da empresa me acusar de negligência com o horário de entrada. A tolerância é de quinze minutos. Será que há tolerância para a tolerância? Não, não há. Se não chegasse na hora seria obrigado a ficar além do expediente e pagar pelos minutos dormidos a mais.
Não consegui avançar como gostaria, o trânsito estava lento. Todos tiveram a brilhante ideia de dormir um pouco mais e sair no mesmo horário, só pode.
Resolvi cortar caminho por uma avenida, mas rapidamente percebi que todos também tiveram o mesmo plano magnífico. Queria passar, mas o carro da frente estava lento, mais lento do que o camarada da pista à direita. Pode isso, produção?
Dei seta para a direita, mas não consegui mudar de faixa porque havia uma caravana de gente atrasada assim como eu. Troquei de pista quando um zé mané qualquer deu brecha. Minha alegria foi curta, pois a faixa da direita voltou a alentecer. Voltei para a esquerda num ato digno de piloto de fuga, à frente do retardatário que me atrasava. Avancei mais alguns metros, feliz. Acreditava de todo coração que chegaria a tempo. Não demorou muito até surgir outro veículo vagaroso na esquerda. Espremi as vistas para olhar através do meu para-brisa e do dele: não havia ninguém à sua frente, nada que justificasse sua lentidão. Minha mão ganhou o ímpeto de estrangular a buzina na esperança de fazê-lo se tocar. Antes, contudo, meus olhos buscaram a placa de seu carro. Não consegui evitar. Não consigo até hoje porque desde menino brincava com meus pais de formar palavras com as letras da placa do veículo da frente, como se fossem iniciais. Isso quando não são óbvias, por exemplo: SOL 2342, CEU 0666, CQC, MIL, BMW, GOL, etc.
Encarei a placa do carro que me atrasa e o que li? GOD.
Pensei comigo “Oh my God tire essa besta da minha frente”. Não sei se Deus ouviu meu pedido ou simplesmente decidiu ignorá-lo, pois não adiantou. Ele deve ter coisas mais interessantes a fazer: uma estrela gigante-vermelha explodindo, um buraco negro consumindo uma galáxia inteira, civilizações interplanetárias guerreando entre si… Não, ele não ouviria um sujeito no trânsito apenas para realizar seu capricho, pois afinal de contas, a culpa era minha, quem mandou eu ficar cinco minutos a mais na cama?
Consegui outra brecha na direita, ultrapassei ilegalmente o da placa GOD e avancei. O que encontrei adiante? Outro carro com as letras Gê, O e Dê. Não é brincadeira, é sério isso. Era de outra marca, cor, mas a placa tinha as iniciais da palavra deus em inglês. Naquele momento acreditei de todo coração que Deus tinha senso de humor refinado. Ele sabe das merdas que pensei – que agora encontram-se escritas aqui – e decidiu rir. Fodam-se as explosões de estrelas, buracos negros e guerras interestelares. A nova moda era pentelhar os apressados no trânsito.
Como dá para perceber, não sou uma pessoa religiosa, pelo menos não do modo tradicional. E se você for, sugiro interromper a leitura, pois a coisa vai piorar. Não vou a igrejas, ou faço orações ou promessas. Minha religião é outra, chama-se motocicleta. Gosto de viajar em duas rodas nos finais de semana, faça chuva ou faça sol. Veja bem, quando se viaja de ônibus ou carro você tem um belo de um para-brisa a sua frente e grandes janelas aos lados. São como tv’s de alta definição. Através delas a paisagem ao longo da estrada se desenrola, passiva. O ar condicionado e o conforto do banco dão a sensação de estar sentado no sofá de casa. O volante é controle remoto. Na motocicleta não é assim. Você sente o atrito com o ar, esteja quente ou gelado – a temperatura é medida na pele. A paisagem é experimentada através da vibração decorrente das irregularidades do asfalto, da potência do motor, da velocidade de aceleração. 120, 130 Km/h no carro nunca será a mesma coisa de estar na mesma velocidade em uma motocicleta. Imagine os pingos de chuva contra sua pele a essa velocidade… Você sente o motor entre as pernas dando o seu melhor e a estrada vibrando a quinze centímetros do pé. Você não assiste a paisagem de seu para-brisa full HD, na motocicleta você é a paisagem.
Confesso que a metáfora utilizada não me pertence, mas passou a ser parte da minha religião. Minha espiritualidade é me re-ligare à natureza em volta da estrada, ser parte dela. Minha novena é trocar marchas. Meu incenso é sentir a gasolina queimar. Minha bíblia, o manual de manutenção. A estrada e eu somos uma coisa só. Só ela sabe aonde vai me levar. Sou muito pequeno perto do trajeto.
Pode parecer contraditório (talvez seja) falar da motocicleta de tal modo enquanto relato sobre um dia de trânsito infernal em um carro. É que eu precisava trabalhar engomadinho e levar pastas e mais pastas de casa para a empresa, e vice-versa. Não havia saída, literalmente. Talvez você esteja na mesma situação. Voltemos.
Em um semáforo fechado fiz algo inédito. Subi na calçada, passei o segundo carro com a placa GOD e esperei pela luz verde em cima da faixa de pedestres. Foda-se, não podia perder para o ponto eletrônico – estávamos em uma competição onde o tempo era a favor dele. O sinal abriu e todos ficaram para trás, sentia participar da largada da fórmula um.
Mais alguns metros à frente a lentidão se instaura de vez, e o que encontro na faixa da esquerda? Outro carro devagar. Qual sua placa? Não, dessa vez não era GOD. Ufa! Mas, o problema não era esse. Adivinhe o que havia no vidro traseiro… Um gigantesco adesivo escrito: Deus é fiel.
Ao ler a frase do adesivo tirei o pé do acelerador, não sabia bem o motivo. Segui o fluxo. Deixei de correr e se tivesse de chegar atrasado, tudo bem, não me importava mais. A imagem dos três carros tomou conta da minha mente. Ecoava. O que isso quer dizer? Nada, talvez. Só sei que quando, enfim, cheguei, não reparei nas horas do ponto eletrônico. Também não me lembro se paguei as horas devidas ou se descontaram do meu salário. Dois meses depois pedi demissão e hoje não tenho ponto eletrônico, trabalho por conta.
Quando estou na motocicleta entrelaçado nos braços de minha esposa, o tempo do relógio não passa. É como se o continuum espaço-tempo se alterasse, sai o deus Cronos e entra Kairós. Algumas pessoas tiveram essa sensação quando seus filhos nasceram, quando se apaixonaram, ou quando conquistaram um sonho muito desejado. Os antropólogos a chamam de experiência estética. No passado era denominada como experiência mística, religiosa.
Não posso ser hipócrita em acreditar que este modelo seja universal e que todos irão se beneficiar de tal experiência. Não é um modelo científico. Cada um pode se re-ligare à sua maneira.
A estrada mostra que o sagrado e o profano convivem – a beleza da paisagem, um caminhoneiro cretino que te fecha, companheiros de duas rodas que cruzam em sentido oposto, a vontade de ir ao banheiro e nenhuma parada por perto – sagrado e profano, certo e errado, bom e mau no mesmo terreno.
Por séculos a experiência com o sagrado foi institucionalizada em uma dualidade infantil – Isto ou Aquilo, Deus versus Diabo, masculino vs. feminino. Uma simples estrada mostra que na Vida, às vezes, as coisas são Isto e Aquilo. A estrada não é só uma estrada, ela é também uma metáfora, ela é um poema. Basta calibrar os olhos para ver. É nossa consciência que insiste na unilateralidade, e assim tende a enxergar placas de carro de modo simplista, como se fossem apenas placas de carro.
O sagrado é real, assim como o profano. Os dois coexistem independentemente da nossa vontade. Se souber enxergar, poderá vê-los acontecer até em um engarrafamento, quiçá em placas de automóveis.