O que é uma boa narrativa?
A narrativa é “a representação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos, reais ou fictícios, por meio da linguagem e, mais particularmente, da linguagem escrita”. Essa é a definição de Gérard Genette[1], no início de seu ensaio, cujo objetivo é analisar os limites da narrativa. O autor considera que esta definição é “positiva” porém simplista, pois pode mascarar os aspectos problemáticos do ato narrativo, que não é tão evidente, tão simples, tão natural quanto deixa parece ser na definição acima.
A definição “positiva” da narrativa, de Gérard Genete, como “a representação de um acontecimento… por meio da linguagem…escrita” conduz às histórias, aos romances, às fábulas etc. Da imensidão de autores que se propõe a contar histórias, poucos são os que possuem o domínio da arte de narrar, como a vê Walter Benjamin[2].
Benjamin afirma que as melhores narrativas são aquelas “que menos se distinguem das histórias orais”, das histórias contadas por viajantes sobre os diferentes lugares do mundo, das histórias contadas pelas pessoas que conhecem as tradições e costumes de seu próprio país, sendo estes historicamente os primeiros “mestres da arte de narrar”. Agregaram-se a este grupo os artífices, que nas oficinas contavam suas histórias aos aprendizes migrantes que, por sua vez, as reproduziam em casa.
Outra característica da narrativa, segundo Benjamin, é a dimensão utilitária – um ensinamento moral, uma sugestão prática, uma norma de vida (p. 200). No entanto, o escritor esclarece que, para dar conselhos, é imprescindível que o narrador tenha de fato vivido o que escreve e que saiba contar as suas experiências e transmitir a sabedoria, que é o “conselho tecido na substância viva da existência”. Benjamin afirma que a “arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção” e ele vê um indício de evolução na morte da narrativa, que é o surgimento do romance (p. 201). No entanto, também o romance é ameaçado com outra forma estranha à narrativa: a informação. A informação apresenta o fato “pronto”, explicado, de maneira que não é preciso recorrer ao miraculoso, à surpresa, ao extraordinário, características essas que dão amplitude à narrativa e daí serem incompatíveis (p. 203).
Tomando como base o texto de Walter Benjamin e lançando um olhar perscrutador sobre a narrativa de O Senhor das Moscas (Lord of the Flies é o título em inglês) de Willian Golding, serão analisados alguns elementos constitutivos dessa história, verificando-se a presença de características de sabedoria ou de conselho de acordo com a ideia de Benjamin, ainda que não seja uma narrativa da experiência real do autor-narrador e sim uma narrativa de ficção.
O Senhor das Moscas é a história de um grupo de meninos que sobrevive à queda de um avião em uma ilha deserta. O grupo tenta organizar-se para conviver na nova “sociedade”, porém na luta pelo poder afloram violência e selvageria. As tentativas de uso racional do espaço ou busca e divisão da comida tornam-se verdadeiras batalhas e causam mortes. Na introdução da edição da Faber and Faber Limited (1962[3]), Ian Gregor e Mark Kinkead-Weekes, da Universidade de Kent (Canterbury, UK), fazem uma distinção entre ficção e fábula. O romance de ficção, segundo eles, pode abordar uma situação ou uma pessoa, de maneira específica, de acordo com o interesse do autor; já a fábula possui uma ideia do senso comum, até generalizada como, por exemplo, “o poder corrompe” ou “o mundo não é um lugar razoável como acreditávamos”. Essa ideia é apresentada através da ficção e “conduz”, de certa maneira, o leitor a reagir conforme a proposta. Para esses dois estudiosos, O Senhor das Moscas apresenta características dos dois tipos simultaneamente, mas eles se referem ao livro como fábula em todo o seu texto de apresentação. Golding cria uma situação (os meninos na ilha deserta) na qual apresenta a natureza humana afastada da vida em sociedade, o “eu” interior revelado de maneira direta e perspicaz. (p.iii), de maneira que para os objetivos deste trabalho o texto será analisado como fábula.
O Senhor das Moscas foi publicado pela primeira vez em 1954.Ian Gregor e Mark Kinkead-Weekes observam, em sua introdução, que nesse ano, o mundo estava enfrentando os resultados das atrocidades da guerra, da bomba atômica, da destruição em massa de pessoas e que o livro de Willian Golding reflete “a escuridão do coração humano” tão real no livro quanto em seu contexto de produção.
O autor narra a história dos meninos ao mesmo tempo em que descreve a ilha como um lugar paradisíaco, com grama farta, muitas frutas, a praia com águas que mudavam de cor conforme a luz solar, água doce e espaços onde os meninos podiam brincar à vontade. Embora tenham sofrido um acidente aéreo, inicialmente eles desfrutaram da beleza e da liberdade da ilha sem se preocuparem com o seu destino. Sentiram, porém necessidade de organizar a nova vida e, sob o comando do menino Rafael, reuniram-se algumas vezes para definir as regras de convivência, os lugares para “aliviar o ventre”, o cuidado com a fonte de água doce, construíram abrigos para dormir e organizaram um grupo da caça. Também se organizaram em sistema de rodízio para manter uma fogueira acesa com o objetivo de produzir fumaça e assim chamar a atenção de navios que passassem pela ilha.
Nesse contexto organizado, a aparição de uma figura no mar e depois no alto da montanha, que se mantinha em movimento constante, despertou o medo do grupo e imediatamente a tal figura foi nomeada de “a fera”, causando terror em alguns, dúvidas em outros. Com ideias diferentes sobre como defenderem-se da “fera”, o grupo dividiu-se: Rafael, o líder escolhido por votação, tenta manter o grupo unido, apelando para a razão, argumentando que já visitou toda a ilha e não viu animais selvagens, que não há sinais de animais grandes e que devem permanecer juntos, principalmente por causa dos pequeninos, que sentiam mais medo; os caçadores liderados por Jack, que se faz líder pela força, decidem oferecer um “presente” à “fera” e deixam a cabeça de sua caça – um porco selvagem – numa estaca. Eles aceitam, de alguma maneira, que a “fera existe” e convencem a maioria a acompanhá-los nas caçadas e danças ao redor do fogo. Essa dança é semelhante a um ato de religiosidade primitiva, que, de certa maneira, confirma o afloramento dos instintos selvagens nos meninos-caçadores.
A cabeça de porco deixada como “presente” permanece por dias na estaca, totalmente coberta por moscas – e eis O Senhor das Moscas! Essa figura representa o belzebu, o diabo, que significaria o mal dentro do Éden, “o antigo e inevitável reconhecimento” (p.171). Simon é o único menino que encontra O Senhor das Moscas e a cabeça “fala” com Simon, dizendo que é natural que eles queiram divertir-se, que o final de todos já é conhecido, que Simon deveria seguir a maioria. Essa “fala” pode ser interpretada como uma loucura que acomete o menino, ele que é considerado um idiota pelo grupo, mas uma leitura mais atenta pode demonstrar que Simon é o único que percebe o que está acontecendo com o grupo, que “o mal” está aflorando, esse “mal” que é o mal da natureza humana, encoberto pelas regras da sociedade e que, sem o controle da civilização, tende a assumir o controle do ser humano.
Após o encontro com O Senhor das Moscas, Simon sobe a montanha e descobre que a “fera” é na verdade, um paraquedista morto, que ficou preso nas árvores. Quando o vento batia, o paraquedas erguia-se, dando a impressão de um “monstro” descendo a montanha. Simon percebe que a “fera” era inofensiva (p.181), que o medo que acometia todo o grupo não tinha mais razão de ser. Talvez seja possível “ler” que essa “fera” é como o mal em cada ser humano, não é algo externo, visível. Simon decide voltar ao grupo e contar a sua descoberta. Quando chega ao local onde os meninos ficaram comendo e comemorando a caçada, Simon não é reconhecido imediatamente, pois está muito escuro. O grupo está dançando em volta da caça, numa espécie de transe e cantando: “Mate a fera! Corte sua garganta! Derrame seu sangue!”. A dança torna-se regular e frenética, numa excitação selvagem. É neste momento que Simon chega, gritando que descobriu o que é a “fera”. É imediatamente cercado pelo grupo, atacado com as armas de caça até a morte. Esse ritual revela a selvageria, a falta de consciência dos atos, uma “harmonia” maléfica na dança que conduziu ao transe e à morte de Simon. Após esse episódio, todos os acontecimentos na ilha são conduzidos pela desordem, destruição e mais uma morte.
O autor conduz a narrativa contando os demais atos insanos dos meninos (com exceção de Rafael que se torna um fugitivo na ilha) de maneira intensa e em longos parágrafos, descrevendo a agonia de Rafael durante a perseguição. Num rompimento repentino, o texto muda para o aparecimento de oficiais da Marinha na ilha. Há uma ruptura drástica no texto e o leitor é reconduzido ao “mundo real”. Ao deixarem a ilha, as palavras finais de Rafael, o único menino que permaneceu, de certa forma (não totalmente) incontaminado no meio do horror e da maldade, são de lamento pela “inocência perdida e pela escuridão do coração humano”(p.248).
Analisando a fábula de Golding é possível identificar elementos que podem ser definidos como característicos da sabedoria do narrador e ainda outros que podem ser considerados como conselhos, o que justificaria a natureza da fábula, como se propõe o autor, de acordo com a análise de seus críticos na introdução da obra.
Alguns elementos na narrativa podem ser destacados como “manifestações” da sabedoria ou como conselhos do narrador, como na passagem sobre a convivência dos meninos menores, que se dedicavam às brincadeiras na praia durante todo o dia. O narrador descreve, nesse contexto, a atitude de Roger, um menino mais velho que fica à espreita de um pequenino que brinca descuidadamente, construindo castelos de areia. A intenção de Roger, de acordo com o narrador, é atirar pedras no pequenino. Ele lança as pedras, que inicialmente, caem na água sem atingir o menino. Depois, ele enche as mãos de pedras e reinicia os lançamentos. No entanto, algo o faz parar. Nas palavras do narrador, ali “… invisível, contudo forte, estava o tabu da vida antiga. Em volta da criança de cócoras estava a proteção dos pais, da escola, da polícia e da lei. O braço de Roger estava condicionado por uma civilização que não sabia nada dele e estava em ruínas” (p. 78).
O trecho acima expressa a opinião do narrador quanto à civilização, considerando-a em “ruínas”. No entanto, essa mesma civilização, de alguma forma, protege o mais fraco, como no caso do pequenino que não poderia defender-se, caso Roger decidisse apedrejá-lo.
Em outra passagem lemos que “havia o mundo brilhante da caça, das táticas, da alegria feroz e da habilidade; e havia o mundo perplexo e desejoso de bom senso.” (p. 89). Essa frase do narrador está inserida na descrição de uma briga entre Jack e Rafael, que ocorreu em razão de o grupo liderado por Jack ter saída à caça e esquecido de manter o fogo aceso, o qual serviria de sinal para os navios que passassem pela ilha. Mais uma vez, é possível perceber a manifestação do narrador nesse contraste que a frase evoca entre o desejo pelo divertimento em detrimento da responsabilidade comum. Outro contraponto que o narrador apresenta está nas seguintes frases de Rafael, ao tentar aproximar-se dos caçadores, que estavam deliberadamente boicotando as regras de convivência:
“– O que é melhor – ter regras e aceitá-las ou caçar e matar?
– O que é melhor – lei e resgate ou caçadas e desordem?”(p. 222)
Novamente, o narrador apresenta pontos importantes que inevitavelmente conduzem o leitor à reflexão. É possível verificar, nos trechos citados acima, que a “sabedoria” do narrador manifesta-se nas afirmações, nos encaminhamentos que faz aos contrapontos, o que conduz o leitor pela “moral da fábula”.
Em outros trechos, o narrador faz afirmações sem contraposições, apenas apresenta na fala dos personagens uma ideia consolidada como, por exemplo, a fala do menino Piggy, em meio a um conflito, declarando que “o que é certo, é certo”, excluindo a possibilidade de o personagem considerar outro olhar sobre a sua situação:
“…mas eu não peço meus óculos de volta como um favor…não porque você é forte, mas porque o que é certo é certo.” (p. 211)
O texto de Willian Golding possui algumas característcicas da narrativa clássica, como por exemplo, a questão do aspecto (ou “o olhar”), de acordo com Todorov[4]. O “olhar” é o do narrador que possui a visão “por trás”: narrador >personagem (p.246). O narrador vê tudo, conhece os pensamentos dos personagens e sabe mais que os personagens. “É ele que nos faz ver a ação pelos olhos de tal ou tal personagem, ou mesmo por seus próprios olhos, sem que lhe seja por isto necessário aparecer em cena” (p. 255)
Em relação ao modo da narrativa, que é a maneira pela qual o narrador a expõe (de acordo com Todorov, p. 250), há duas classificações principais: a representação e a narração. O texto de Golding se faz pelo modo de narração, ou seja, o autor “diz” as coisas, não as “mostra”, como seria no caso da representação.
Embora apenas alguns elementos da narrativa tenham sido destacados aqui, é possível considerar que a história de “O Senhor das Moscas” é um exemplo de narrativa clássica: possui um narrador onisciente, um enredo que possui verossimilhança, um texto que apresenta tese e antítese, numa sequência lógica de acontecimentos.
Além desse aspecto formal, merece destaque a dimensão utilitária, citada por Walter Benjamin – o ensinamento moral, a sugestão prática, a norma de vida (p. 200). Embora fuja um pouco à ideia de Benjamin no que diz respeito à vivência mesma do autor em relação ao fato contado, pois que O Senhor das Moscas é obra de ficção, a história apresenta um fio condutor, como que um aviso ou um chamado para a condição humana. É, à primeira vista, uma visão negativa: é a afirmação de que o mal está no ser humano, que mesmo vivendo em um paraíso, com todos os recursos da natureza ao seu dispor, não consegue deter a malignidade de seus instintos. Em última análise, o ser humano é mau, de maneira inata. Essa visão, porém, possui o mérito da utilidade, de chamar à reflexão, o que a alçaria ao patamar das “melhores narrativas”, considerando o critério de Walter Benjamin.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Magia E Técnica, Arte e Política. 2. Ed. São Paulo, SP : Braziliense, 1986.
GENETTE, Gérard. Fronteiras Da Narrativa. In: BARTHES, Roland [Et Al.] Análise Estrutural Da Narrativa. 7. Ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2011.
TODOROV, Tzvetan. As Categorias Da Narrativa Literária. In: BARTHES, Roland [Et Al.] Análise Estrutural Da Narrativa. 7. Ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2011.
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo : Perspectiva, 2011. Coleção Debates 14.
[1] GENETTE, Gérard. Fronteiras da narrativa. In: BARTHES, Roland [et al.] Análise estrutural da Narrativa. 7. ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2011.
[2] BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política. 2. ed. São Paulo, SP : Braziliense, 1986.
[3] GOLDING, William. Lord of the flies. With an introduction and notes by Ian Gregor and Mark Kinkead-Weekes of the Faculty of Humanities, University of Kent at Canterbury. Educational Edition. Faber and Faber, 1962, 288 p.
[4] TODOROV, Tzvetan. As categorias da narrativa literária. In: BARTHES, Roland [et al.] Análise estrutural da Narrativa. 7. ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2011.