Um sentido precário marca Esperando Godot
O mundo não faz sentido, nem depende de nós para continuar a existir. Se desaparecermos um dia, talvez não muito distante, as coisas vão prosseguir. De que modo já não vai ser possível saber, mas provavelmente desbotando e dissipando nossos rastros em seu tempo cósmico. Plástico, garrafas de vidro e pneus de caminhões, nossa mais generosa oferta para a posteridade, reduzidos a vestígios ou quem sabe incorporados a novas formas, uma hora vão se esquecer de seus outrora ilustres pais.
Na base das mais diversas culturas, no entanto, reside um esforço de perenidade e coerência. As religiões, as ciências, as línguas e os costumes são as teias que enredam o caos. Explicam o confuso, modelam o amorfo, ligam pedaços desconexos, contam histórias e narram fatos. Pavimentam o chão das próximas gerações. Conservam, projetam.
Em movimento alheio a esse ajuste construtivo da realidade, uma ala irreverente e de natureza eminentemente radical da arte modernista concentra suas investidas. Na esteira das experiências disruptivas de certo romantismo, suas obras falam de um lado menos luminoso e cognoscível da vida, tateiam o inominável e se lançam ao intangível, sem contudo querer encerrá-los. Tematizam e formalizam o vazio, a loucura, o mínimo e o máximo, o nada e o ilógico. Em vista desse mergulho no obscuro, todos os fundamentos e alicerces da arte anterior parecem se esboroar aos nossos olhos. Mas com isso um mundo menos embebido em nossos parâmetros soergue, enquanto os referenciais sedimentados do que seja o humano desmoronam.
É claro que um mundo em estado bruto nunca nos será acessível. Estamos presos à mediação. Mediação do corpo, dos valores e da própria obra. Por mais que nos esforcemos em neutralizar essas marcas, haverá sempre uma lente deformante pela qual vemos, sentimos. O que esses autores produzem são deslocamentos da percepção, breves vislumbres do inaudito, curtos-circuitos. Assim, destronam a consciência, anunciam a falência da linguagem e nos reposicionam pequeninos diante de um mundo grande e indecifrável que temos procurado, ao longo dos séculos, obstinadamente domar.
Samuel Beckett é um desses autores. Sua peça mais conhecida, Esperando Godot, é exemplar desses aspectos. Escrita em 1949, a peça só estrearia em janeiro de 1953, no Théâtre de Babylon. No palco quase deserto, a dupla Vladimir e Estragon aguarda, dia após dia, por um tal Godot que não aparece. O mais curioso é que os amigos inseparáveis sequer o conhecem. O cenário se resume a uma estrada no campo, uma árvore esquálida, possivelmente um chorão, e uma pedra. O tédio da espera é preenchido por falas, jogos e ações destituídos de força dramática. Nem mesmo a entrada de outro par, Pozzo e Lucky, consegue alterar substancialmente esse quadro monótono.
Godot patina, gira em falso. Sustenta sua arquitetura quebradiça no avesso da virtuosidade humana e dramatúrgica. Expõe o fracasso, a falha, o oco. Vladimir e Estragon são desvalidos. A memória das personagens é restrita e danificada, de modo a impedir a progressão do tempo, que se torna circular como na balada do cachorro cantarolada por Vladimir. As botas desajustadas de Estragon, a alimentação à base de nabos, cenouras e rabanetes, a ausência de abrigo e os parcos recursos cênicos traduzem o empobrecimento intencional da peça.
Leituras alegóricas identificaram nessa precariedade uma alusão ao abalo da Segunda Guerra, sobretudo motivada pela participação de Beckett na resistência à invasão nazista. De um lado, os símbolos emanam do contexto; de outro, da biografia do escritor irlandês. Se, no entanto, destacarmos o polo da recepção, verificaremos certa blindagem da peça às interpretações. Alguma coisa sempre escapa ou nega os significados que lhe dão, como se a obra permanecesse infensa às associações. Daí talvez uma provocação fenomenológica das mais ousadas: um artefato que recusa a atribuição de sentidos explicadores. Em última instância, isso não anula completamente o sentido, mas revela o que existe de precário nele.