Em “O Sétimo Continente”, Michael Haneke demanda do espectador paciência, mas nos recompensa com um dos filmes mais impactantes do chamado “slow cinema”.
Listando peculiaridades
A parte mais legal de frequentar uma rede social para amantes do cinema, é ver as listas criadas pelos usuários para enquadrar seus filmes favoritos dentro de determinadas categorias, as quais por vezes são demasiado esquisitas e não usuais – e aí é que está a parte legal.
Uma das listas com que me deparei um dia desses intitulava-se “Nothing happens, yeah, but the vibes”[1], e sua intenção era indicar filmes que costumam ser acusados de não ter enredo ou de ser lentos, em que de fato “nada acontece”, mas que, a despeito disso, conseguem estabelecer uma conexão emocional profunda com o espectador.
Outra lista que saltou a meus olhos recentemente foi a seguinte: “Films that are even more damaging to think of than to actually see”[2], o que eu traduziria, da maneira mais livre possível, como “Filmes cujo efeito é transferido para depois”.
Embora não tenha encontrado muita coincidência entre os títulos indicados por cada uma delas, não consegui deixar de vislumbrar uma relação de irmandade entre essas listas, já que tantas vezes me vi traída por filmes de superfície entediante, mas que guardavam em si tsunamis emocionais que só me atingiriam tempos depois.
É que a lentidão, de fato, é incômoda, especialmente neste mundo em que, como não é novidade para ninguém, a velocidade é atributo indispensável a qualquer área da experiência humana.
O cinema, seguindo tal direção, tem nos blockbusters de ação, com seus cortes ultrarrápidos e seus personagens ultravelozes, um exemplo do ritmo frenético que sinaliza essa tendência de nosso tempo. Mas nem sempre as tendências são seguidas, e, como a história da arte ensina, os padrões existem para serem quebrados.
Quando o cinema desacelera
O cinema lento, ou slow cinema, não é um movimento recente; alguns teóricos assinalam que entre seus progenitores mais famosos estariam Ingmar Bergman, Andrei Tarkovsky e Chantal Akerman. As tomadas longas, a atenção aos detalhes e o ritmo contemplativo são características comuns às obras de tal modelo cinematográfico, e por isso se costuma ouvir que tais cineastas são “difíceis” e não “conversam” com qualquer tipo de público.
Mas, dito isso, não pretendo entrar aqui em termos acadêmicos para tratar do assunto, e sim falar de um filme oriundo de uma safra posterior, que a meu ver se encaixa quase que com total precisão nas definições, bem menos técnicas e bem mais sensoriais-afetivas, que é o que realmente me interessa.
Sim, trata-se de um filme em que durante quase noventa minutos “nada acontece”. Então, se você é uma pessoa extremamente impaciente, sugiro que não siga em frente com minha recomendação. Porém, ultrapassada a barreira da urgência e, por que não?, do tédio, aqui está uma oportunidade única de se fazer sentir uma obra de arte muito mais do que apenas acompanhar as imagens que se desenrolam à sua frente – o risco inerente a isso é que, para além da tela, talvez essas imagens nunca mais desgrudem de suas retinas.
Repetição, enfado e mal estar em cartaz
O austríaco Michael Haneke é um diretor que costuma ser colocado na prateleira dos artistas cruéis, em cujos filmes a humanidade é retratada com tamanha brutalidade e desprezo que os críticos por vezes até esquecem do aspecto formal que os caracteriza, privilegiando os (sempre chocantes) temas abordados em suas obras.
Mas em “O Sétimo Continente” (1989), filme de estreia do cineasta, é impossível não atentar para o quanto a forma e o conteúdo se mostram interdependentes, de maneira a amplificar o profundo impacto que sentimos depois de, finalmente, os créditos começarem a subir.
Linhas atrás, antecipei que “nada acontece” no enredo, mas, à guisa de sinopse, vamos lá: o filme retrata a repetitiva existência de uma família de classe média enquanto seus membros planejam uma atitude drástica para escapar à aprisionadora rotina a que estão submetidos.
Desligar o despertador. Levantar da cama. Vestir a roupa. Amarrar os sapatos. Abrir as cortinas do quarto da filha. Alimentar os peixes. Preparar o café da manhã. Deixar a menina na escola. Ir ao lava-jato: esperar dentro do carro enquanto a espuma o encobre. Trabalhar. Fazer compras no supermercado. Voltar para casa. Jantar: minutos de silêncio para testemunharmos o infindável ato da mastigação. Ver televisão antes de dormir. No dia seguinte – no ano seguinte, e ainda no próximo –, a mesma sequência.
As tomadas repetitivas de Haneke têm por principal finalidade chamar a atenção ao “nada acontece” que insiste em – vejam só! – se repetir todos os dias. Só assim é possível vislumbrar a espécie de aprisionamento em que se encontram os membros desta família – “só eles?”, indaga implicitamente o cineasta ao espectador – e que os fará tomar a decisão mais definitiva de todas.
Só assim, também, é possível que sejamos expostos ao choque de constatar que a desumanização de indivíduos repetindo mecanicamente suas rotinas por tanto tempo é capaz de levá-los a agirem com a mesma naturalidade e metodologia na prática de ações que até então se diriam inconcebíveis.
Já não são mais humanos – o movimento monótono da câmera e a escolha por dar mais destaque aos objetos do que aos rostos dos personagens amplificam esta inquietante constatação –, mas o que realmente perturba é que, em verdade, nada os difere de nós.
O terror que nos rodeia
“O Sétimo Continente” é, a meu ver, um filme de horror. A façanha do autor, nesse caso, foi deixar de lado os sustos, os monstros, a ação, para extrair pavor de uma normalidade que, de tão costumeira, chega a causar enfado.
“É isto a vida?”, ficamos nos questionando enquanto observamos o passar de três anos em uma existência que não seria melhor descrita em termos filosóficos pelo absurdismo de Albert Camus.
O derradeiro ato, praticado não com desespero, mas sim de maneira metódica, parece indicar, enfim, uma vitória da lógica ante o absurdo. Mas a que custo as coisas passam a fazer sentido?
Eis a armadilha hanekiana da vez: o ritmo lentíssimo do filme é tentador para que os espectadores cometam um ato de desistência e o abandonem no meio, mas isso os colocaria em par de igualdade com os personagens ali retratados, que escolheram a solução mais fácil para o problema da lentidão em suas vidas.
Nós, então, resistentes à tentação do cineasta, ficamos até o fim para testemunhar mais uma camada – a última, ufa! – desta normalidade tediosa. Mas, para surpresa de todos, nessa nova camada as ações já são outras, destinadas a algum fim ainda não muito bem definido.
A normalidade, porém, persiste, e é ela que dá ensejo ao terror, tão logo nos damos conta de que fim é este: o rigor sistemático com que o plano é seguido, a ausência de desafogos emocionais (e pior, de porquês), e o teor rotineiro do impensável são imagens fortes demais para serem dispensadas assim que o filme termina.
O depois
Mas, então, o filme acaba e você pensa: “Ok, nada acontece… Até que acontece”. Você pensa, em um primeiro momento, que não valeu a pena aguardar quase duas horas para que algo acontecesse, e que tamanha perda de tempo acabou resultando dessa sessão. Então, você abandona a sala de cinema. Dirige até em casa. Prepara o jantar. Mastiga a comida. Dorme. Acorda. Desliga o despertador. Levanta da cama. Amarra os sapatos. Abre as cortinas do quarto…
De súbito, uma imagem que ontem lhe parecera despropositada se atravessa em seus pensamentos. As outras vêm a galope, contrastando com o ritmo arrastado de uma experiência que, no seu entender, tinha tudo para ser esquecida, tal como o tedioso ato de esperar a espuma encobrir seu carro dentro de um lava-jato.
Então, você sente.
Referências
[1] https://letterboxd.com/nightatmauds/list/nothing-happens-yeah-but-the-vibes/
[2] https://letterboxd.com/joaq_/list/films-that-are-even-more-damaging-to-think/
Créditos HL
Esse texto é de autoria de Bibiana Lucas, colaboradora fixa do HL para a coluna de Cinema. A revisão é de Raphael Alves. A edição é de Mario Filipe Cavalcanti, editor-chefe do site.