O shopping não foi feito para homens sem qualidades

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Joguei pra escanteio o meu ideal de dândi ao inverso e me convenci a comprar uma camisa nova para ir ao casamento de um amigo. O shopping estava abarrotado de gente. Tinha fila pra tudo: pra entrar, para subir a escada rolante, para usar o banheiro, para comprar, para pagar, para descer a escada rolante, para sair. Foi difícil pacas. Três horas de um dia nessa brincadeira. A febre consumista que arde mais ainda nesta época do ano me fez lembrar O Homem sem qualidades, do austríaco Robert Musil.

Ulrich é o tal moço desprovido de predicados da obra, lançada em dois volumes no início da década de 1930, fazendo seu autor se tornar persona non grata na Alemanha nazista. Num determinado momento, Ulrich decide que é hora de reformar a casa. Eis aí que surge uma das muitas questões existenciais do personagem. O decorador promete uma casa com o estilo do protagonista.

A ameaça ‘dize-me como moras e eu te direi quem és’, que lera tantas vezes em revistas de arte, pairava sobre sua cabeça. Depois de muito se ocupar dessas revistas, decidiu que era melhor trabalhar pessoalmente na construção da sua personalidade, e começou a desenhar seus futuros móveis. Mas assim que imaginava uma forma impressionante e suntuosa, ocorria-lhe que em seu lugar podia colocar uma forma utilitária, técnica e menor; e quando desenhava uma despojada forma de concreto, lembrava-se das magras formas primaveris de uma menina de treze anos, e começava a sonhar em vez de tomar decisões.

Não sabendo quem é nem quem quer ser, Ulrich não tem meios de saber qual estilo deseja para decorar a sua casa. E por isso se pode dizer que ele seria um mau consumidor – ao contrário de nós, que vamos ao shopping deixar o nosso quinhão para a sociedade de consumo, uma vez que sabemos muito bem quem somos ou, pelo menos, quem deveríamos ser.

Afortunado, com pouco mais de 30 anos, Ulrich decide se proporcionar um ano sabático (entre 1913 e 1914) em busca da cura para o mal estar causado pela vida. Esse é o mote da trama de viés filosófico. Com o romance, que remete ao Império Austro-Húngaro, Musil crítica os elementos centrais que compõem uma sociedade: o status quo, as convenções sociais, as falsas morais, o automatismo e a uniformidade dos indivíduos.

O homem sem qualidades é um não ser, um anacrônico nos tempos atuais, em que galgar posições é o que importa.

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