O silêncio do cão

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Quanto mais ando pela cidade menos a entendo. Talvez eu devesse abandonar essa pretensão e adotar uma meta mais humilde e possível, como encontrar todos os meus amigos e amigas ao menos uma vez por ano ou terminar de ler os livros da minha estante, duas ações que me confortam e me dão uma leve certeza de não ser o único desajustado nessa Curitiba cinzenta povoada por crias bizarras.

Só podem ser bizarras, saídas de algum conto que ainda não li. A primeira impressão é de serem pessoas comuns, mas um olhar mais atento revela suas faces caninas. Uma expressão mais séria e com as bochechas caídas, eis um buldogue; os cabelos caídos para a frente, pouco abaixo dos ombros, eis um cocker spaniel; se estiverem cacheados, a pessoa me lembra um poodle; e demais combinações mundo cão afora.

Meu estranhamento com essa mistura entre animal e humano foi confirmado por algumas pessoas, às quais perguntei que tipo de cachorro seriam. Se a tivesse ouvido, você não se incomodaria com uma questão inocente e descontraída dessas, feita durante a pausa do cafezinho ou em meio a um passeio no canil, digo, na calçada. É uma informação relevante, pense comigo – saber a raça do próximo, se assim ele permitir, é uma pista para desvendar o mistério de suas pegadas e de seus latidos.

Mas os mistérios permanecem, e conhecer o nome de uma raça pode não significar muito, você sabe. Sempre encontro humanos levando cães enquanto caminho pela Comendador Araújo, desde pugs em passos curtos como seus donos a pessoas com cabelos tão enfeitados quanto pelos de poodle, e confesso não saber qual animal está conduzindo qual. Já busquei diálogo com um desses.

Foi em uma tarde em que eu estava na mencionada Comendador, e dobrei na esquina dela com a Coronel Dulcídio; estava a meia quadra quando notei outro par misto de animal e humano. Uma senhora acompanhada de um schnauzer, simpático cão de barba e bigode, freou o passo porque seu canino conviva decidiu farejar a base de uma árvore próxima. A senhora não demonstrou interesse no gesto dele, talvez fosse apenas outro ponto onde ele pousasse o focinho, desde a raiz de uma planta até o pé de alguém, feito o meu. Também animal de barba e bigode, arrisquei papo com o schnauzer, o achei parecido com um cão vadio das minhas relações, com quem dividi um osso e, creio, já latimos pela mesma cadela. Soltei um ‘fala meu velho!’, ele resmungou qualquer coisa e desconversou, aliás, não latiu e continuou a farejar como se eu não estivesse ali.

Depois que tomei um rumo diferente do schnauzer e de sua acompanhante humana, fiquei a pensar se o confundi. Não era possível, o olhar entrega quando você já conhece alguém, mesmo quando não lembra da criatura e finge disfarçar puxando papo com outra. E sem querer o cão justificou uma das famas de Curitiba: a introspecção de seus habitantes, cujos rostos moldados pelo frio e pelo silêncio reduzem conversas a sílabas. Fiquei em dúvida se o cachorro aprendeu isso na convivência com pessoas, mas no meu íntimo eu sabia que se Curitiba fosse uma pessoa me diria para perguntar menos e andar mais.

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