O sorriso de Alice

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Edwin Saunders. Esse nome era repetido na televisão enquanto eu fazia o jantar. Não familiarizada com a história do sujeito, parei um segundo para entender a importância dele. Quando terminou a reportagem, uma tristeza em mim. Pobre Saunders. Era dentista. Dos bons. Mas sua profissão era ingrata: Edwin Saunders era o dentista responsável pelo raríssimo sorriso da rainha Vitória. A monarca que viveu conforme as mais evidentes características do seu reinado, ria pouco, era séria, sisuda, moralista. Olhando para a parede, fiquei especulando que entre eles, Edwin e Vitória, nasceu aquele ditado que os avós falavam pra gente: “muito riso é sinal de pouco siso”.

E dentro de tanta lição de moral, rigidez e de histórias marcadas pela certeza de que nem o crime e nem a diversão gratuita compensam, um certo Charles Dodgson, em companhia de um amigo e as crianças Lorina, Edith e Alice, conta, num passeio de barco, uma história sobre as aventuras subterrâneas de uma pequena menina. A originalidade do conto? A completa falta de senso!

Começava assim, uma literatura dentro do período vitoriano que, diferentemente de tudo feito até então, apelava para a imaginação, a criatividade, a falta de padrão social. Pelo menos assim se apresentam Lewis Carroll e sua criação mais conhecida: Alice.

Dentro dos parâmetros da literatura infantil vitoriana, uma frequente característica é a criança órfã. O Jardim Secreto e Oliver Twist não me deixam mentir. Alice, no entanto, usufrui do luxo de um jardim, cercada pela família de classe média. Através dos registros dos diários e documentos no começo da produção de Alice como livro em si e para publicação, o ilustrador John Tenniel concedeu o crédito de dar a Alice todo o seu perfil de menina vitoriana de classe média.

Porém o mais interessante, na minha opinião, é a quebra da regra ou, melhor colocado, o recurso usado por Carroll para contar uma história excitante e com incríveis aventuras, sem precisar apresentar Alice como órfã. A miséria e a glória da personagem, diferente de Oliver Twist que se depara com a dureza dos outros e da cidade, sozinho e desamparado, Alice entra numa viagem com alucinações que podem até mesmo caracterizar no termo já tão usado do “autoconhecimento”.

Até abril, a brilhante e riquíssima British Library mostra uma exposição tão interessante para os grandes quanto aos pequenos. Originais dos pensar ementos de Carroll, esboços das ilustrações do auto mais tarde de John Tenniel, ideias do editor (Macmilliam) e impressões. Tudo dentro dos vidros protegidos da biblioteca, além de incríveis instalações com recortes do texto do livro, espelhos mirabolantes, desenhos psicodélicos e uma loja que faria Carroll muito orgulhoso dos feitos da obra. Pelos registros, entendemos que Lewis Carroll era muito interessado na merchandising de tudo que estava ligado a Alice e dedicava-se intensamente a cada detalhe da publicação.

A circulação da obra de Alice dentro da sociedade vitoriana foi impactante e resultou em espécies de plágios. Mabel in Rhymeland, por exemplo, publicado pela Holland, trazia elementos claramente copiados da obra original de Carroll. O autor, envaidecido ao invés de enfurecido, criou uma estante em sua casa para abrigar os plágios que provocou.

Uma das maiores revelações da exposição da Biblioteca Britânica em relação à publicação de Alice é a transformação da própria personagem ao longo das interpretações que sofreu.

A menina pintada pelo autor tem cabelos castanhos e traços característicos da arte produzida por amigos como Dante Gabriel Rossetti, um dos fundadores da Irmandade Pré-Rafaelita. A Alice como conhecemos hoje, foi produto da Disney. Além de dar à menina cabelos muito louros, a corporação América vestiu Alice de azul com um avental branco. Talvez a mudança mais profunda e escandalosa da Disney tenha sido o “abrandar” da obra considerada pelos padrões como muito escura, complexa e com passagens muito pesadas.

Há inúmeras adaptações do original. Há livros resumidos, há os que mantiveram o texto original cuja escrita seduz pela sofisticação estrutural de um inglês florido e cheio de curvas. É sonoro, lúdico e encantador.

Dei de presente para a minha filha a versão completa. Ela já está com sete anos e acompanha bem a estrutura mais sofisticada do original. O volume que eu escolhi foi o que teve as incríveis ilustrações de Helen Oxenbury. Na interpretação da artista, Alice não é tão loura, tem roupas mais contemporâneas, mas ao mesmo tempo mantem certas características de traços clássicos vitorianos.

Comemora-se em março o Dia Mundial do Livro. Perguntei pra minha filha de qual personagem ele quer se fantasiar. “Alice!”, ela se entusiasmou. E como é a roupa da Alice que você vai vestir?

“A roupa normal da Alice: vestido azul, avental branco. A clássica.”

Puxa, a Disney ganhou a batalha da representação visual da Alice. Mas vamos firmes e fortes no nosso original inglês com as passagens complexas, pesadas não sustentadas pelo outro lado do Atlântico.

Alice in wonderland está em cartaz na British Library até o dia 17 de Abril.

A British library fica a 5 minutos da estação de Euston e a entrada é franca.

Na loja da exposição é possível comprar todas as edições de Alice disponíveis hoje no Reino Unido.

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Nara Vidal é mineira de Guarani. Formada em Letras pela UFRJ, é Mestre em Artes pela London Met University. Mora na Europa há 14 anos. É autora de infantis, juvenis e seu primeiro adulto, “Lugar Comum” (Editora Pasavento), já em reimpressão, foi lançado em abril deste ano. Nara já participou como autora palestrante em diversas feiras literárias como a Flipoços, Clim, FNLIJ e Cheltenham Festival. Premiada com o Maximiano Campos e com o Brazialian Press Awards, Nara tem textos publicados em revistas como Germina, Mallarmargens e Confeitaria. Escreve sobre dança e artes para publicações inglesas. Lança este ano o livro de contos “A loucura dos outros” pela Editora Reformatório.

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