De acordo com a filosofia moral de David Hume, através de nossos juízos morais nada afirmaríamos sobre o mundo, apenas expressaríamos ou projetaríamos nossas próprias reações psicológicas em relação a certos fatos e acontecimentos.
Essencial para adentrar a filosofia de Hume é ter em mente que “através de nossos juízos morais nada afirmaríamos de verdadeiro ou de falso sobre o mundo, mas apenas expressaríamos ou projetaríamos nossas próprias reações psicológicas a certos fatos e acontecimentos”. Somente a partir desta observação torna-se possível a tentativa de estruturar e estabelecer qualquer tipo de conceito: existem as reações e comportamentos, individuais ou construídos coletivamente, mas antes deles, os juízos morais que dizem respeito aos sistemas em que são interpostos.
Vale ressaltar que o coletivo, neste caso, é que diz respeito aos objetos de estudos e análises bem mais que o individual, que serve apenas para exemplificação. O indivíduo não sendo mencionado como modelo, pode apresentar-se fora de um padrão comum, e a análise pode acabar tratando, equivocadamente, de casos pontuais e isolados, através dos quais seja pouco frutífera a tentativa de utilização de métodos ou observações para trazer à luz algumas respostas e conclusões que dizem respeito a natureza humana.
Tendo isto posto, é fundamental retomar a maneira humeana de análise da virtude e do vício, que buscou conceituá-los, fundamentalmente, a partir de uma relevância facultada aos olhares envolvidos, em todos os espectros, das ações ou atitudes percebidas. Atentando para uma maior aproximação do conceito com a realidade que lhe é externa, mas pela qual é, por diversos ângulos atravessado, e que envolve uma multiplicidade de personagens e fatores atuantes. Não é aspirada uma universalidade dos princípios morais que estabeleça o que é moral, o que é imoral, o que é virtude, e o que é vício, são levadas em conta todas as características inerentes a épocas, sociedades, situações e, primorosamente: a utilidade que existe em cada uma das situações, das ações e comportamentos, que são os objetos analisados.
Por exemplo, a virtude é, em Hume, “qualquer ação ou qualidade mental que suscita no espectador o sentimento agradável de aprovação”. Uma definição que remonta um dos princípios básicos da comunicação: que esta só se realiza pela presença de um emissor, receptor, mensagem e código. No caso da virtude – que poderá ser, ao final, encarada como um vício -, indivíduos agindo (emissores) e indivíduos assistindo (receptores), cada qual em suas respectivas formações – sociais, políticas e culturais –, e que dizem respeito a suas próprias maneiras de enxergar e lidar com o mundo. As especificidades dos que agem são encaradas pelos que assistem-nas com suas próprias especificidades, desta forma, o código que emitem através de suas ações e as mensagens que são recebidas podem não ser necessariamente captadas com exatidão, por exemplo, pelo desequilíbrio nos juízos de valores entre os componentes envolvidos.
É precipitado legitimar, admitir a existência de uma virtude apenas por uma harmonia em sua decodificação, sendo esta apenas uma referência para compreensão – mínima – do seu processo de constituição. Trata-se sim, primeiramente, de “qualquer ação ou qualidade mental que suscita no espectador o sentimento agradável de aprovação”, mas é possível ir muito além da mera aprovação do outro para conceber a virtude em sua maior potência.
Existe uma consciência que limita-se a uma parcela dos homens, e que faz referência não só a existência das virtudes em si, da sua mera constatação, mas de uma consciência da própria capacidade, e dos benefícios destas virtudes; das utilidades delas que cabem, ou que cumprem algo, ao mundo, e que não limitam-se a estreiteza das vaidades; que dizem respeito a uma satisfação própria em fazer algo que tenha um real significado (utilidade), ainda que não para si mesmo, e ainda que mínimo. “Quem não é tocado por algum exemplo notável de grandeza de espírito ou dignidade de caráter, pela elevação do sentimento, pelo desdém pelo servilismo, e por aquele nobre orgulho e entusiasmo que nascem da virtude consciente?”.
São estes homens: os sábios, com suas virtudes que não precisam ser vangloriadas, nem recompensadas, que não estão em busca de “entretenimentos fúteis” para pagar suas ações, não estão a procura de honra, riquezas, ou boa reputação. São homens com virtudes que existem em si e para si, e que desta maneira, promovem em si tranquilidade e indiferença – a capacidade de enxergar a virtude, e o resto do mundo, e o curso das coisas com naturalidade -, constituindo aquilo que deve ser chamado de “grandeza espiritual”.
Estes homens nos quais as virtudes existem e prosperam sem necessitar de atribuições materiais, ou mesmo de aplausos, tampouco necessitam de grandes ações para demonstrar sua grandeza. Ela existe e é percebida sem esforços, manifestando externamente a maneira como são dotados de um potencial além do agradável, o potencial do sublime, relacionado a grandeza desde seus próprios objetos: as sensações ou impressões que revelam uma grandiosidade inesperada, uma cadeia de sentimentos que dizem respeito a algo grande o suficiente ao ponto de escapar a definições. Esta designação de tamanho diz respeito ao que provoca, as consequências do sublime: enfraquecimentos na relação estável que há entre o inteligível e o sensível, que fogem de qualquer uma das faculdades mentais. A grandeza espiritual, desta forma, reflete-se nesta sabedoria, que é sublime. E em sua manifestação ao que há em redor: a grandeza espiritual coloca a pequenez do indivíduo diante da grandeza do universo sem explicitar suas razões.
“O sublime, diz Longino, muitas vezes não é nada mais que o eco ou imagem da grandeza espiritual, e quando essa qualidade se manifesta em alguém, mesmo que nenhuma sílaba seja enunciada, ela excita nosso aplauso e admiração”, o sublime é então, deste modo, uma reflexo sensível da virtude que é despretensiosa, mas consciente em sua grandeza, e que é capaz de atingir o inteligível de maneira a confirmar sua existência: existe uma sensação gerada a partir de uma ação ou de alguém, que sem explicações causa um sentimento de aprovação e admiração superior a outros casos, mesmo os mais semelhantes; que não encontra explicações óbvias e que só pode referir-se a algo muito mais complexo.
Uma sensação proporcionada pelos sábios, despreocupada e, justamente por isso, de verdadeira relevância e intensidade, ainda que de fundamentos ininteligíveis, e que fazem paralelo aos conceitos estéticos de Kant, onde belas são as coisas que encantam, e sublimes são aquelas que comovem. Belas seriam todas as virtudes, em sua genuinidade e utilidade pública, de compreensão passível dos olhares dos homens e do mais simples raciocínio. Sublimes seriam as virtudes perceptíveis apenas por um sentido além dos juízos morais ou dos sentidos fundamentais humanos, a partir de uma qualidade, a grandeza, presente naqueles que dela são dotados. Sublime talvez diga respeito a uma vocação, que independe de fatores externos para prosperar, tal como estas “belezas naturalmente talhadas para despertar sentimentos agradáveis liberam imediatamente as suas energias, e enquanto durar o mundo, elas conservarão sua autoridade sobre a mente dos homens”.
BIBLIOGRAFIA
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