Muita gente associa as histórias em quadrinhos à infância. Afinal, qual criança nunca se encantou pela Turma da Mônica? Que jovem nunca se inspirou nos heróis da Marvel? Talvez por isso, após tal época da vida, os leitores migrem para produções com menos figuras e mais texto, crentes de estarem crescidinhos demais para o formato anterior. Por isso, caros colegas de canoa furada, peço que me escutem com atenção: vocês não têm ideia do que estão perdendo.
Existe muita coisa boa nesse formato sendo produzida para adultos. Na verdade, a proposta passou a ser tão sofisticada que os escritores/desenhistas do gênero resolveram utilizar o termo graphic novel (“novela gráfica”) para se referirem às suas produções, diferenciando-as dos quadrinhos infanto-juvenis. Um dos grandes talentos dessa geração de novelistas gráficos é o americano Craig Thompson, vencedor do Harvey Awards, do Eisner Awards e outros prêmios da área.
Criado em uma família extremamente religiosa, Thompson teve infância e adolescência bastante reprimidas. Os pais controlavam qualquer coisa a que ele e os irmãos assistissem, e a música que ouviam dentro de casa limitava-se à religiosa. O único acesso às artes era por meio de gibis – Tartarugas Ninja era uma de suas leituras favoritas, porque os pais supunham ser inofensiva à formação do menino, já que feita para crianças. Thompson atribui seu gosto pelo gênero justamente a tal contato, realizado em meio a tantas proibições.
Seu difícil crescimento e amadurecimento deram origem a um de seus mais comentados trabalhos: o livro Retalhos (2004). Nessa história autobiográfica, Thompson aborda as relações com o irmão, com a religião e com o amor, mostrando os desencantos que cada uma delas lhe proporcionou, ao mesmo tempo em que retrata os caminhos futuros abertos a partir dali. É uma obra íntima e verdadeira, repleta das dúvidas que permearam a sua adolescência e com as quais qualquer jovem da mesma faixa etária consegue se identificar. Uma história sem morais, apenas importantes descobertas. Uma espécie de “romance gráfico de formação”, se pudermos importar o termo da literatura convencional.
É uma obra muito diferente de seu último trabalho, o elaborado Habibi (2011). Situada no Oriente Médio, a história segue os passos de Dodola e Zam, dois órfãos que se encontram e aprendem a sobreviver juntos, desenvolvendo um amor mútuo que os ajuda a passar por situações de ameaça física e, principalmente, de confusão psicológica. O formato da narrativa é muito sofisticado, emprestando a estrutura “história dentro da história” das Mil e Uma Noites; desse modo, encontramos um fio condutor principal entremeado por flashbacks da própria trama central, ou por lendas e episódios do Corão que, de alguma forma, se relacionam com o que se passa. Além disso, a arte gráfica, parte essencial do gênero em questão, é magnífica, com traços estilizados e referências constantes à caligrafia e à cultura árabes, elementos auxiliares na entrada no universo da história. Todo esse esmero fez com que a obra levasse nada menos do que oito anos para ser terminada.
Habibi enfrentou algumas críticas a respeito de uma possível visão adocicada do Oriente feita para ocidentais. Porém, os que sustentam essa tese talvez não tenham lido Retalhos, ou entendido bem o tom geral da obra de Thompson. Não se trata de uma obra política, mas sim de uma narrativa sobre sentimentos. Aliás, suas obras têm isso em comum. Quem optar por começar por Habibi e só depois ler Retalhos – como foi o meu caso – poderá perceber na obra autobiográfica o embrião, tanto gráfico quanto narrativo, da complexidade visual e emocional de sua última produção. O escritor tem seu estilo e suas prioridades, o que torna no mínimo injusta uma avaliação com foco em tensões políticas e culturais exploradas em programas jornalísticos.
Craig Thompson é um dos bons produtores de graphic novels da atualidade. Para quem está pensando em experimentar as HQs depois de algum tempo nas narrativas em prosa, sua obra é, sem dúvida, uma ótima indicação.