As mulheres nos contos dos Grimm
A tradução de Lucy Crane da coletânea Household Stories dos irmãos Grimm teve sua primeira publicação em 1881. Mesmo com menos de um quarto do total de histórias da compilação final, Grimm’s Fairy Tales, a coletânea já trazia aos seus leitores a maioria dos contos que hoje formam o cânon dos contos de fada, como Cinderela, Branca de Neve, João e Maria e Bela Adormecida. Traduzida do alemão, foi ilustrada por seu irmão, o imensamente talentoso e influente Walter Crane. Todas as ilustrações deste artigo foram feitas por ele para o Household Stories.
E nós conhecemos essas histórias. Mesmo as mais curiosas, as que não ouvimos antes, mesmo essas não nos surpreendem tanto, pois o universo onde ocorrem os contos dessa coleção é nada mais que a Europa fantástica. Estamos habituados a esse universo medieval e simplista: fomos seus habitantes quando crianças. Hoje lemos sobre os mesmos reis e rainhas, fiéis valetes, lenhadores e bruxas, alfaiates, flautistas e animais falantes que fomos lidos no passado. Somos, em verdade, a prova de que essa coletânea teve tanto sucesso em consolidar arquétipos da literatura de contos de fada quanto teve sucesso em outras veredas (como, por exemplo, em arquitetar uma identidade folclórica alemã).
Chapeuzinho Vermelho (Little Red Riding Hood)
Mas se por acaso a memória preserva essas histórias sob as lentes da infância, rápidas em separar o preto do branco, lê-las novamente como adultos nos lembra da contraparte real da Europa fantástica. Grande parte dos contos do livro começa com suas personagens como camponeses em situação miserável. Vale, inclusive, aplicar certo olho crítico à forma como essa realidade emerge na própria estrutura das histórias e em seus enredos. Com atenção, é fácil que sintamos certa rigidez nos parágrafos. Os contos satisfazem sempre a fórmula das progressões repetitivas que reforçam a imobilidade da hierarquia social medieval. Quanto aos enredos, é fácil ver que é comum para as personagens só serem capazes de superar seus obstáculos com o protagonismo de algum artefato mágico ou intervenção milagrosa. Foi a realidade para os autores anônimos desses contos (muitos dos quais chegaram aos ouvidos de Jacob e Wilhelm de aristocratas e suas empregadas) que apenas o sobrenatural pudesse transformar em reis, artesãos, e em rainhas, vassalas. Nada além.
E o que nós fazemos quando a vida nos lembra de que é dura? Com certo desespero, viramos as coisas que temos queridas para estar de frente para os que nos mantém aqui. Toda sorte de vida pode ser o alvo dessa atenção que como guindaste nos reboca dia após dia: nossas esposas, nossas famílias. Os contos dos irmãos Grimm, se como audiência têm as crianças, parecem contar de que forma buscamos esperança em nossos filhos e filhas. Prestemos atenção nas meninas, então. De que forma podemos encontrar esperança nelas?
Ilustração de Walter Crane para o conto A Bela Adormecida
Os meninos desde cedo aprendem a espada. Talvez as meninas então saibam fazer paz? Se cercados por trevas, tínhamos nossas filhas e nelas víamos alguma esperança de uma vida com menos morte e mais bondade. Podemos reparar como a moralidade de fábula sobrevive hoje nas páginas de Aschenputtel (Cinderela), de Chapeuzinho Vermelho, de Rosamond (a Bela Adormecida), da princesa caçula do conto The Frog Prince e das meninas do conto The Three Little Men in the Wood e Mother Hulda.
“Ó criança, seja piedosa e boa, e Deus sempre cuidará de você, e eu te guardarei aqui do céu, e estarei com você.”
– Aschenputtel (Cinderela)“O banquete foi celebrado com todo o esplendor; e como ele chegava ao fim, as fadas-madrinhas se aproximaram para apresentar à criança os seus maravilhosos presentes: uma concedeu virtude, outra beleza, a terceira riquezas, e assim por diante”
– A Bela Adormecida
Mas ao em vez de simbolizada pela força, a esperança vem como matéria quebradiça. Nesses contos, as meninas são frágeis. Frente às bruxas e às feras, não tem um décimo da força nos braços que tem nos músculos do choro. Não dão com as sombras cara a cara, não levantam o machado. Ao invés disso, choram. E em um primeiro ler talvez concluamos: há fraqueza nessas lágrimas.
Mas com alguma atenção descobrimos que não. Nessas fantasias, as lágrimas derramadas são sempre lágrimas de vontade, carregam em seu sal pitada de poder milagroso. Sempre do desespero jorra a saída, como fonte inesperada no deserto. O que aparecia como fragilidade, em verdade, era virtude.
Com suas lágrimas, Cinderela levanta uma árvore dos desejos. Branca de Neve derrete o coração do caçador que a executaria. Um sapo é convocado pelo choro da princesa em The Frog Prince para que resgate um brinquedo. Similar acontece com as três tecelãs em The Three Spinsters. Um dos feitos mais espetaculares, contudo, deve-se a Marjory, de The Almond Tree: Marjory chora um pássaro que ressuscita seu irmão.
“Ela agradeceu e foi para o túmulo de sua mãe, e plantou ali um galho, chorando tão amargamente que as lágrimas caíram em cima dele e o regaram, e o galho floresceu e tornou-se uma bela árvore. Aschenputtel visitava-o três vezes ao dia, e chorava e rezava, e cada vez um pássaro branco saía da árvore, e fazendo ela qualquer desejo o pássaro a traria tudo o que ela havia desejado.”
– Aschenputtel (Cinderela)“Mas quando ele desembainhou sua espada para perfurar o coração inocente de Branca de Neve, ela começou a chorar, e a dizer: Ó caçador, não tome minha vida, eu vou embora para a floresta selvagem, e nunca mais voltarei para casa.”
– Branca de Neve
E ainda existem mais exemplos na coletânea onde a virtude transborda como choro.
Ilustração para o conto The Goose Girl
Só dois contos aparecem como exceção: o conto da Princesa da Estrela Dourada e a Grethel de Hansel e Grethel (João e Maria), que se suja empurrando com as próprias mãos uma bruxa no forno para libertar seu irmão. Mas são apenas dois de cinquenta e dois contos.
Terminamos que nos contos populares dos irmãos Grimm, nas meninas está a esperança de prevalecer não através da morte, mas sim através do choro, tristeza que fecunda a terra. Triunfam graças a um desejar ardente, que queima as bochechas e lava os olhos. Em nossa imaginação, com elas aprenderíamos soluções em que não sujaríamos nossas mãos de sangue. Em nossa imaginação, haveria esse método de mantê-las limpas, de não contaminá-las com a sujeira do mundo. Tocariam as coisas só com suas lágrimas. Nunca com lâminas.