O verão sem homens (mas com muita expressividade)

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A autora Siri Hustvedt nos põe em contato com uma mulher fora de um patamar – e das obrigações sociais que o cercam

Siri Hustvedt
Siri Hustvedt

O Verão sem Homens é a história duma mulher cujo marido a abandona por uma colega de trabalho bem mais nova; situação essa que gera um colapso nervoso na esposa, que acaba obtendo uma licença no trabalho e indo passar uns tempos na casa da mãe para se recuperar. Ao lermos esse resumo do romance de Siri Hustvedt, somos tentados a pensar num livro cheio de clichês. Afinal, a situação já foi abordada à exaustão em telenovelas e subliteraturas açucaradas. Mas vale nos perguntarmos: é o tema duma obra literária que define sua qualidade?

Hustvedt, nascida em 1955 no estado de Minnesota (EUA), poderia ter enfocado algum assunto diferente. Talvez tratar dum homem que trocasse a jovem esposa por uma anciã intelectual? Ou um químico famoso que traísse a mulher com um faxineiro do laboratório? Ou abordar uma esposa que, após 30 anos de casamento, abandonasse um marido fiel e dedicado para ficar com um rapaz com idade para ser seu filho? Essas seriam temáticas possíveis, sim, porém qual a vantagem delas diante duma mais usual narrativa sobre adultério masculino típico? Nenhuma. De fato, não é a história que torna a obra literária melhor ou pior, mas – isto sim – a maneira como é narrada.

O que valeria mais: a forma ou o conteúdo? Em nosso dia a dia costumamos responder que o conteúdo é sempre o mais importante. Porém, em se tratando de literatura, não há propriamente essa dicotomia forma-conteúdo. A maneira de dizer cria aquilo que é dito. A linguagem constrói a obra. Só se atinge um dado conteúdo, a partir de determinada forma adequada a ele, pois nessa denominada “forma” estão modos de expressão que constroem os personagens, seus pensamentos e até suas ações, que se tornam interessantes ou não pela maneira como são apresentadas.

Só não se pode dizer que os assuntos eleitos pelo escritor são completamente indiferentes, pois nessas escolhas há aspectos políticos (em sentido amplo). É uma opção ideológica querer tratar apenas dos conflitos íntimos de determinados grupamentos como: homens, cristãos, aristocratas, burgueses, brancos ou heterossexuais. Siri Hustvedt optou por falar dum drama feminino, veraosemhomensnum mundo que nada liga para isso. Em geral, a mulher abandonada só aparece nas novelinhas televisivas de maneira superficial para enaltecer características de beleza bem comportada, recato e reinado sobre um ambiente doméstico ou “virtuoso” – enaltecimento promovido também pelo jornalismo mais conservador.

Longe de elevar a mulher a um patamar de pureza e perfeição (que só lhe gera obrigações sociais), a autora nos põe em contato com um ambiente feminino repleto de riquezas, dores, fraquezas, forças e contradições.

O romance é narrado em primeira pessoa pela personagem Mia Fredrickson, uma poetisa e filósofa de 55 anos de idade, casada com o neurocirurgião Boris Izcovich já há três décadas. A ação se inicia com o marido propondo uma “pausa” no casamento. O universo de Mia desmorona a partir dessa palavra, que a leva a um hospital psiquiátrico. Ela se torna insana? De certa forma, sua extrema lucidez é que a conduz à internação, pois a personagem entende, de imediato, que a tal “pausa” nada era senão uma colega de trabalho de Boris, vinte anos mais jovem. Um vulgar caso extraconjugal.

Após o episódio, a universidade em que M. Fredrikson dá aula lhe concede uma licença de quatro meses. Durante esse período de verão, a personagem se refugia na casa da mãe em Boden, sua cidadezinha natal no estado do Minnesota. Lá, vem a se relacionar com diferentes mulheres: sua mãe e quatro amigas dum clube de leitura, todas na faixa dos 80-90 anos; sete adolescentes para quem vem a dar aula numa oficina de poesia; sua vizinha e a filha. Temos acesso às vulnerabilidades, saberes e pequenas tiranias que caracterizam esses conjuntos de mulheres e seus mundos particulares – que se integram na Bonden tão bem construída ficcionalmente pela autora.

Em seu auto exílio no lugarejo, Mia só convive consigo mesma e com as demais mulheres, que lhe remetem a seu passado, seu futuro e ao que poderia ter acontecido em sua vida. Os homens só aparecem como sombras: o bebê da vizinha, o marido distante e um misterioso interlocutor via correio eletrônico. A narrativa em primeira pessoa favorece uma natural exposição de ideias sobre o universo feminino e seus desafios ontem e hoje. Entretanto as reflexões sobre a mulher aparecem despidas de qualquer didatismo rasteiro ou tom demasiado assertivo, mostrando que Siri Hustvedt domina mesmo o ofício de romancista.

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