O verso em cena: a poesia do bardo inglês

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O que há de tão estimulante na obra do Bardo inglês que seduz leitores ainda hoje?William Shakespeare

Que o bardo de Stratford-upon-Avon é uma unanimidade literária, ninguém duvida. Também pudera, Shakespeare (1546-1616) é autor de inúmeras tragédias, comédias, dramas e poesias. A sumidade literária do escritor, porém, não se dá somente por sua vasta produção mas, principalmente, pela incontestável qualidade de seus escritos.

Suas peças são incansavelmente estudadas e analisadas, por isso mesmo o presente texto vai flanar sobre a produção poética do bardo, que veio à baila das publicações em 1609. Tal premissa, no entanto, não impede que se fale de sua dramaturgia, uma vez que os sonetos, não raro, eram associados ao universo ficcional de suas encenações. É o que se vê, por exemplo, nos coros que antecedem os Atos I e II de Romeu e Julieta (1595-1596). Além dos coros, há no primeiro ato, na cena V, o primeiro diálogo de Romeu e Julieta que, se reescrito na forma poética, muito se aproxima da estrutura de um soneto. À primeira vista, tal ocorrência pode passar despercebida pelo leitor. Reescrito, assim se lê:

ROMEU (a Julieta)
Se minha mão profana o relicário
em remissão aceito a penitência:
meu lábio, peregrino solitário,
demonstrará, com sobra, reverência.
JULIETA
Ofendeis vossa mão, bom peregrino,
que se mostrou devota e reverente.
Nas mãos dos santos pega o paladino.
Esse é o beijo mais santo e conveniente.
ROMEU
Os santos e os devotos não têm boca?
JULIETA
Sim, peregrino, só para orações.
ROMEU
Deixai, então, ó santa! que esta boca
mostre o caminho certo aos corações.
JULIETA
Sem se mexer, o santo exalta o voto.
ROMEU
Então fica quietinha: eis o devoto.

Sobre a função da poesia nas peças de Shakespeare, o crítico Northrop Frye emite uma opinião. Ele diz:

“Em Shakespeare o representável e o teatral vem sempre antes de tudo. A poesia, embora inesquecível, é funcional em relação à peça, não decola sozinha. (…) Shakespeare era um poeta que escrevia peças, mas é mais preciso e menos enganoso dizer que era um dramaturgo que usava sobretudo o verso. (…) e seu instinto para o que se ajusta à situação dramática é quase infalível. ” (página 18)

Historicamente, os versos de Shakespeare ajudaram a abrir o caminho de sua produção teatral. Sabe-se que a Inglaterra elisabetana tratava os atores de teatro como párias e as peças escritas não faziam parte do Cânone Literário. Para se alcançar um certo status artístico na sociedade, era necessário ter um “patrocínio”. Uma das condições do patronato consistia em produzir sonetos e peças para esse “amo”, assim se alçava uma lugarzinho nesse esteio da corte.

Então, poemas líricos, geralmente, eram dedicados ao patrono. Shakespeare escreveu vários para o seu, que se chamava Henry Wriothesley. Em Venus and Adonis, de 1593 e The Rape of Lucrece, de 1594, o poeta diz:

“O que fiz lhe pertence/ o que farei também lhe pertence/ sendo parte de tudo o que tenho/ devotadamente seu.” (página 141)

Nota-se que Shakespeare coloca-se na posição de servo. Há quem especule que o poeta fosse apaixonado por Henry, o que justificaria vários poemas em que o eu-lírico parece manifestar o seu amor a alguém do mesmo sexo. Na verdade, se teoriza que Shakespeare foi um grande poeta por escrever sonetos autobiográficos. O crítico Harold Blomm defende essa tese. Lê-se:

“Sendo Shakespeare, como dizia Borges, todo o mundo e ninguém, podemos afirmar que os sonetos são, ao mesmo tempo, autobiográficos e universais, pessoais e impessoais, irônicos e sinceros, bissexuais e heterossexuais , falhos e íntegros.” (página 104)

O ensaísta procura afastar da poesia Shakesperiana a ideia de eu-lírico como máscara do poeta. Bloom propõe a ruptura deste dogma literário, uma vez que os poemas de Shakespeare recitam fatos que caracterizam a vida do dramaturgo. No soneto 23, ele diz:

“Como imperfeito ator que em meio à cena/ O seu papel na indecisão recita/ Ou como o ser violento em fúria plena/ A que o excesso de força debilita;/ Também eu, sem confiança em mim, me esqueço/ No amor de os ritos próprios recitar./ E na força com que amo me enfraqueço/ Rendido ao peso do poder de amar./ Oh! sejam pois meus livros a eloquência,/ Áugures mudos do expressivo peito,/ Que amor implorem, peçam recompensa,/ Mais do que a voz que muito mais tem feito./ Saiba ler o que o mundo amor escreve, / Que o fino amor ouvir com os olhos deve. ” (página 41)

Os poemas shakesperianos também são importantes por terem significado um rompimento com que era considerado convencional na época. Até então, seguia-se o modelo Petrarquiano de poesia. O bardo inglês manteve alguns aspectos estruturais do soneto, embora a lírica apresentasse algumas variantes na estrofação, nas rimas e nos versos, devido às pequenas palavras do vocabulário inglês. A grande mudança ocorreu mesmo na abordagem temática. No soneto 40, lemos:

“Leva-me, amor, todos os meus amores:/ Que tens agora a mais que não te déssemos?/ Nenhum sincero amor, amor, que apores/ Ao quanto era já teu sem tais acréscimos./ E se é por meu amor que o amor me raptas,/Não te posso culpar se dele abusas;/Todavia te culpo se de adaptas/ Só por capricho ao que em geral recusas./ Gentil ladrão, eu te perdoo a ofensa,/ Pois roubaste de ti minha penúria,/ Que sempre soube o amor ser dor mais densa/ Sofrer seus erros que do ódio a injúria./ Lasciva graça, que faz bem do mal;/ Morro de teu desdém, não teu rival.” (página 59)

Na poética de Shakespeare, o amor pode ser carnal e não idealizado; o eu-lírico pode estar despido de virtudes; o objeto amoroso tanto pode ser masculino quanto feminino e por aí vai.

Esses são alguns dos elementos que contribuem para a perpetuação de Shakespeare. Além de ser o maior dramaturgo que se tenha ouvido falar, o bardo também foi um grande poeta. Especulações sobre sua vida e obra, e idolatrias à parte, seu nome permaneceu e permanecerá, merecidamente, entre os maiores escritores da Literatura Universal.

Referências:

Bloom, Harold. Como e por que ler.Primeira edição. Objetiva, Rio de Janeiro, 2001.
Frye, Northop. Sobre Shakespeare. Edusp, 1999.
Shakespeare, William. Os melhores sonetos. Tradução de Ivo Barroso. Nova Fronteira, Rio de Janeiro,2013.

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