“As pessoas que entram em casa trazem nos sapatos o barro dos caminhos.” (Olívia)
Olhai os lírios do campo foi o meu primeiro contato com um romance de Érico Veríssimo e acredito que possa ter sido o primeiro para muitos outros leitores, já que é, ainda hoje, a obra mais lida do escritor. De acordo com Flávio Loureiro Chaves, autor de Érico Veríssimo: o escritor e seu tempo, ao ler o romance trinta anos após sua primeira edição, Veríssimo se disse desgostoso com a filosofia salvacionista que perpassa o texto, acreditando ainda, que a dedicação, o altruísmo e a nobreza de Olívia parecem quase inumanos.
No entanto, a história encanta desde sua primeira publicação, esgotando várias edições em poucos meses, o que levou Veríssimo a afirmar: “Só depois do aparecimento de Olhai os lírios do campo é que pude fazer carreira como escritor”. Muito provavelmente o tempo tenha modificado nossas próprias convicções e afirmações ideológicas, apesar disso, as personagens e suas peculiaridades psicológicas, em meio ao encantamento de uma história de amor simples narrada ao longo de tantos anos, permanecem.
O romance ficou em mim como um desses livros que a gente termina a última página com um sorrisinho bobo no rosto, sentindo uma saudade gostosa e meio melancólica de um tempo passado. Érico me lembrou que todo o amor vivido, compartilhado, ou sentido (assim como todo o resto), deixa em nós um rastro, uma bagagem, um novo olhar. Ao ler um pequeno trecho de uma das cartas deixadas por Olívia, tive a sensação de ter resumido em algumas palavras todo o amor que já senti: “As pessoas que entram em casa trazem nos sapatos os barros do caminho”. Assim como levamos, em nós, um pouco de cada gente que nos toca e com quem compartilhamos (ou apenas entregamos) sensações.
O amor deixa cartas, palavras, memória, abre novos espaços. Ah, as cartas! É o que mais me fascina. Reler textos, bilhetes, rascunhos ou tentativas poéticas de outros tempos me transporta quase que automaticamente para o momento em que foram pensadas. As memórias deixadas por Olívia despertavam sempre em Eugênio uma vontade de ser melhor, é o ponto que me encanta no amor. Em suma, ficou-me a sensação de que toda experiência é válida e pode nos despertar e aproximar cada vez mais do que verdadeiramente somos. E, se nada fizer sentido, permanecem as boas lembranças.
Lembranças essas que têm grande destaque na obra, já que Veríssimo trabalhou com o terreno da memória. É pelas cartas, pelas lembranças e pela memória de Eugênio que conhecemos Olívia e é esse outro ponto que me encanta – é mais fácil comover-se com a memória. Conhecemos Olívia através do pouco que nos é revelado e nos aprofundamos a tentar entender seus silêncios, palavras e registros escritos e pelos próprios sentimentos deixados em Eugênio. Assim acontece na vida, conhecemos do outro o que nos é revelado, temos pistas, fragmentos, sensações, e assim, descobrimos pouco a pouco anseios, desejos e personalidades. Transpondo para fora do papel, essa é uma das características que me fascina em personagens reais, descobrir pessoas através de silêncios e palavras que nos são deixadas. Buscamos nas pessoas a felicidade na troca e nossa própria poesia. Foi o que senti em alguns trechos de cartas de Olívia.
“Mas o que procuro, o que desejo, é segurar a vida pelos ombros e estreitá-la contra o peito, beijá-la na face. Vida, entretanto, não é o ambiente em que te achas. As maneiras estudadas, frases convencionais, excesso de conforto, os perfumes caros e a preocupação de dinheiro são apenas uma péssima contrafação da vida. Buscar a poesia da vida fora da vida será coisa que tenha nexo?”
Enquanto isso conhecemos Eugênio desde a infância, quando começa a construir suas primeiras frustrações e sensação de inferioridade, que vão permanecer e influenciar relações ao longo de sua vida. Eugênio busca principalmente o prestígio e o sucesso na carreira, para tentar superar a frustração causada por privações no início da vida. Ao longo de suas contradições e recordações de Olívia, ele começa a reconhecer-se melhor. Acompanhamos uma personagem cheia de dúvidas, receios e contradições, como a própria humanidade. É possível conhecer melhor Eugênio através das próprias cartas deixadas por Olívia, como a deste trecho de que tanto gosto.
“Hoje tens tudo que sonhavas: posição social, dinheiro, conforto, mas no fundo te sentes ainda bem como aquele Eugênio indeciso e infeliz, meio desarvorado e amargo, que subia as escadas do edifício da faculdade, envergonhado de sua roupa surrada. Continuou em ti a sensação de inferioridade (perdoa que te fale assim), o vazio interior, a falta de objetivos maiores. Começas agora a pensar no passado com uma pontinha de saudades, com um pouquinho de remorso. […] Pois ainda passarás horas mais amargas e eu chego até a mar teu sofrimento, porque dele, estou certa, há de nascer o novo Eugênio”.
Por fim, atraio-me imensamente pelo terreno fértil e inventivo da memória. Lembramos das cenas influenciados por nossas próprias sensações, assim como a recordação de Olívia construída por Eugênio. Cabe a cada um, no momento certo, entender e dissociar a imaginação da verdade, a sensação do ocorrido, a memória do amor e a vivência dele próprio.