Olhai os dilemas do campo
O médico sai do quarto n.º 122 e pede que a enfermeira avise ao Dr. Eugênio: “É um caso perdido, questão de horas, talvez de minutos. E ela sabe que vai morrer…”. Assim começa o romance Olhai os Lírios do Campo, lançado em 1938, escrito pelo gaúcho Érico Veríssimo (1905-1975).
A obra prende a atenção do leitor desde o começo. Qual a ligação de Olívia – a doente desenganada – com o médico Eugênio Fontes, naquele momento hospedado na distante chácara do sogro Vicente Cintra? A história é montada em retrospecto, a partir das lembranças que Eugênio vai tendo ao percorrer velozmente as estradas rumo à enferma Olívia.
O romance é dividido em duas partes, a primeira das quais se constitui pelos fluxos de memória do personagem conduzido pelo chofer Honório em alta velocidade. As recordações vão emergindo e compondo o painel da vida daquele médico de origem pobre que, hoje, partilha da riqueza da abastada família Cintra.
Eugênio veio a estudar num internato chique, o Columbia College, com grande sacrifício para seus pais, que trabalhavam na escola para lá o manterem. Filho da simplória Dona Alzira e do modesto alfaiate Ângelo, o menino sentia vergonha da família e sua pobreza. Desde cedo foi alvo de zombarias dos outros alunos e se ressentia delas mais que seu irmão Ernesto, o qual se resigna à pobreza, mais tarde buscando no álcool o alívio às tristezas cotidianas. Para Eugênio, porém, não parece haver consolo possível, nem em ideais políticos, nem em convicções religiosas ou mesmo no amor – elementos personificados na idealista Olívia: jovem médica também pobre a quem conheceu no dia da formatura. A paixão nasceu entre os dois, mas iria perseverar, quando sobre ela pairam os fantasmas da pobreza e do ressentimento contra as humilhações sofridas? A necessidade de autoafirmação (tornar-se mais rico e poderoso que os opressores do passado) seria maior que o amor sincero?
Eugênio se divide entre Olívia – que representa a verdade, o idealismo, os valores éticos genuínos – e Eunice Cintra, a milionária, envolta numa aura de elegância, hipocrisia, relativismos morais e cinismo petulante, bajulada por todos. Entrando para a família Cintra pelo casamento, o médico abandonaria seu ofício aprendido na faculdade, ganharia cargo decorativo na empresa do sogro, mas usufruiria de tudo aquilo que o destino lhe havia privado até então.
Sua mãe, D. Alzira, sempre se referia ao destino como se fosse a uma pessoa – quando algo ruim acontecia à família, retrucava: “Foi o Destino”. Mas agora, na vida adulta, tinha-se a chance de escolher, de traçar a própria história, livre das determinações de um “Destino” exterior e personificado. Eugênio pensa que talvez não exista um Deus, talvez não haja a que se curvar, seja destino ou qualquer outra coisa transcendente.
Vale a pena fazer como Dr. Seixas, que optou por ser médico de pobres sem que isso lhe trouxesse vantagem pessoal alguma? Ou é melhor uma vida de prazeres ociosos semelhante à do magnata Vicente Cintra? Ou a existência deve ser uma constante demonstração de força como entende o rico engenheiro Filipe, entusiasta do Fascismo, que entrega toda a sua alma à construção do gigantesco edifício Megatério, projeto ambicioso que lhe toma todo o tempo?
No capítulo treze se inicia a segunda parte do romance, na qual a história irá se desenvolver a partir da chegada de Eugênio ao hospital em que Olívia se encontra. Será tarde para fazer as escolhas certas?